O fotógrafo



’Uma mulher sabe quando os sinais do tempo batem à sua porta. Surgem as primeiras linhas de expressão,  os fios brancos e a perda do viço. É hora de cortar os cabelos e ajustar um visual mais clássico, de acordo com a nova idade.

Aceitar o tempo é sinal de sabedoria e boa formação.
É muito melhor envelhecer com dignidade.
Esmalte e batom vermelho não são apropriados para uma senhora...   Ainda mais esposa de um ministro.    Melhor esquecer as novidades  e adotar a discrição’’



Era assim que Angélica regia seus hábitos, severos e regrados.
Foi a maneira que aprendeu com a  mãe, uma grande dama da sociedade. O casamento de quase trinta anos, estabilidade financeira, um filho na faculdade e outro formado. Tudo que Angélica precisava para ser feliz e viver sem  preocupações.
Uma manhã como todas as outras, tomando café da manhã com o marido, notou um olhar diferente:

- O que foi meu bem? O café está muito forte?

- Não...Está ótimo.

- Provou o bolo? O recheio é de goiabada. O seu preferido.

- Angélica! Há quanto tempo a gente não transa?

- Não sei ...Que pergunta! Você é quem deveria saber.

- Porque eu? Você não sente falta? Não se preocupa com nada além do recheio do bolo?

- Que isso Alberto? Você é homem e quando me procura temos relações. Eu...Não lembro...Talvez um mês ou dois.

- Não! Tem seis meses e você não disse nada. Não enxergou nada...Continuou sua rotina e me excluiu da sua vida.

- Meu bem... Não quero discutir. Estamos envelhecendo, não temos o mesmo ímpeto da juventude. É normal!

- Normal? Não temos nem setenta anos e você acha que estamos mortos. Eu não estou e não quero terminar meus dias ao seu lado.

- Como assim? O que está dizendo? Vamos mudar tudo! Fazer uma viagem...Sair mais com os amigos...

-Angélica...Eu não aguento mais!... Não quero viajar, sair ou fazer amor com você.Você age como minha mãe!

- É outra mulher? É isto? A famosa crise chegou atrasada, pensei que fosse aos cinqüenta...

- Não é apenas outra pessoa em minha vida...É a minha vida que estou deixando de viver ao seu lado.

- Alberto! Que loucura... É uma menina mais nova?...Só pode ser!

- Angélica... Meu armário está quase vazio, venho tirando minhas roupas há tempos...E você não percebeu...Seja sincera, não confunda orgulho com amor... Não temos mais nada em comum.

Alberto foi embora e Angélica afundou no sofá da sala ampla e bem decorada. Chamou a governanta e dispensou todos os empregados por tempo indeterminado. Andou pelos cômodos analisando a decoração impessoal. Austera e luxuosa.

Tudo tão limpo, arrumado e silencioso. Os olhos estavam secos, assim como a garganta e o coração. Não sabia o que fazer nem tinha forças para tomar qualquer atitude. O telefone tocou várias vezes e a noite chegou sem que Angélica saísse da apatia.

No terceiro dia, os filhos encontraram Angélica deitada no sofá...abatida e sem forças. Cheirando mal...sem falar qualquer palavra. Os seguranças do condomínio haviam ligado para o embaixador, preocupados com os latidos constante dos cães famintos e o sumiço da dona da casa.

Angélica acordou no hospital ainda  sob    efeito     de medicamentos. Estava sendo reidratada e sob constante observação. Apurou os sentidos e   escutou   os   filhos discutindo baixinho:

- Agora vamos ter que tomar conta dela.- O mais novo estudava Odontologia em outra cidade e sempre encontrava desculpas para não aparecer.

- Você quer dizer...Eu vou ter que cuidar disso. Papai nem ligou para saber notícias. Está tirando o corpo fora como sempre. Tenho minha vida , moro com meu namorado há anos e nunca pude assumir. Não é justo, sempre sobra pra mim.

- Calma Pedro, ninguém disse que ela precisa de acompanhante.

- Ela está mal...Deprimida e não tem mais ninguém. A vida dela sempre foi a família. Agora papai foi morar com a amante. Coitada...Que escândalo! Nunca acreditei naquela cara de santinho...Falso moralista!...

Para uma mãe dedicada, foi muito triste ouvir os filhos disputando quem não ficaria com ela. Angélica continuou fingindo que dormia e eles finalmente foram embora. Pensou na vida e reviu fases e cenas inteiras.
O filho era gay e ela nunca desconfiou! O marido tinha outra e  não percebeu os sinais... Sentiu-se uma completa idiota!
O telefone tocou e resolveu atender. Estranhou a prima afastada oferecendo companhia:

- Vou ser sincera, não suporto mais viver na casa da minha filha. É briga todo dia e meu genro é uma peste! Vai ser uma troca de favores, o Pedro me ligou e ofereceu  a oportunidade.

- Mas não sabia que o Pedro ainda tinha seu telefone. Não nos vemos há mais de dez anos.

- Ele teve  um   trabalhão    procurando  um    parente disponível.

Angélica aceitou e logo estava dividindo a casa com uma estranha com mania de limpeza. A prima vivia implicando com os empregados, mandando e desmandando. Angélica não dizia nada e parecia viver em um mundo à parte. Passava a maior parte do tempo trancada em seu quarto e pouco falava com os filhos.



      Aprendendo a Viver



O tempo passou e Lucia sentia-se dona da casa. Quando não tinha mais nada para reclamar, saía para passear em outros bairros:- Vou  olhar as modas. Ver vitrines é muito bom, depois  tomo  um café em alguma livraria.Quer vir? Vive entocada neste casarão...Quase um ano e ainda parece que está de luto.

Angélica não respondeu...Havia descoberto a internet e passava horas navegando e olhando sites variados. Uma verdadeira obsessão pelo belo em todas expressões, nascia como forma de compensar a solidão.

Adorava ver pinturas e desenhos, poesias, esculturas e fotografias.
Desde menina tinha o sonho de ser fotografada por um profissional. Alguém talentoso e que soubesse seus melhores ângulos. O fotógrafo da família fazia o que sua mãe determinava. Poses sérias condizentes com sua posição social. Nunca foi além do álbum de casamento e fotos comuns e sem graça. Sonhava com as antigas estrelas de cinema, vestidos longos e luvas. Eternizadas em molduras atemporais.

 Clicando em fotos, uma em especial chamou atenção pela idade avançada da modelo. Diversas tomadas e a sensação de que a senhora  estava divertindo-se além da conta. Leu o nome do profissional: Ricardo Pozzo.

Buscou informações e encontrou os Blogs de fotos e poesias. Mandou um email elogiando o trabalho e recebeu um convite para a exposição em um espaço cultural.
Pela primeira vez aceitou o convite e após uma desculpa apressada, deixou a prima boquiaberta com a súbita mudança.    Chegou cedo e imediatamente gostou do ambiente tranqüilo e claro.

As obras cobriam algumas colunas e paredes de forma harmoniosa. Aceitou uma taça de vinho e passeou por toda galeria.
O artista cercado por  amigos e admiradores, parecia muito simpático e simples. Angélica aproximou-se timidamente: - Gostaria de dar meus parabéns. Gosto muito das suas fotos e sou uma grande fã. 

 Pozzo foi muito atencioso e conversaram um pouco sobre a exposição :- É muito gratificante ouvir sua opinião. Pode criticar também dona Angélica, já percebi que acompanha meu trabalho e entende de arte.

- Imagine! Na mocidade tinha um grande sonho, pena que os tempos eram outros...

- Mas que sonho é este dona Angélica? Posso ajudar?

- Não. Hoje estou velha e não tem mais graça. Nunca tirei uma foto em estúdio...Sempre quis e nunca me permitiram.

- Está vendo aquela sequencia ali à direita? Todos os fotografados tem mais de cinqüenta anos. O que a senhora acha?

- Vi uma destas fotos e não pensei que pudessem compor um mosaico tão lindo. Parecem tão alegres...

- Este é meu verdadeiro trabalho. Sentir a essência, encontrar o momento certo e captar muito mais que um rosto. Compreende?

- Mas a velhice é tão ruim... Quem quer ser velho e ficar feio?

- Dona Angélica, tudo são  ciclos...a criança, o adulto e o idoso são igualmente belos. Estas são a prova de tudo que estamos conversando. Gente comum em momentos normais, de bem com a vida. Concorda?

- Sim. Hoje eu compreendo. Tive maus momentos e agora estou mudando... Estava pensando.. O senhor poderia me fotografar ?

- Será um prazer. Ligue e marque uma hora.
 
Angélica sorriu com o coração aberto e leve. Não era uma velha que tinha parado no tempo... Não era uma tonta sem capacidade de compreender a opção sexual do filho... Não precisava agüentar a prima chata para ter companhia... Não havia desperdiçado a vida... Não tinha que abdicar dos prazeres por conta da idade...E principalmente...Não tinha culpa pelo fim do casamento...

Estava aprendendo a ser feliz e ir além dos muros protetores da casa. Ela simplesmente não sabia que havia um mundo inteiro lá fora....Sempre obedeceu, primeiro aos pais, depois o marido... Estava dando os primeiros passos e aprendendo a se amar. 
 
 
 


Nota: Ricardo Pozzo é fotógrafo e autor de várias ''artes'' tanto no Trilhas como no Parole in Emozioni. Esta é uma
obra de ficção mas como dizem...A vida imita a Arte.

Fotos de Pozzo
: http://www.flickr.com/photos/elquetzal/
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 28/03/2009
Reeditado em 03/05/2009
Código do texto: T1509954
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