Marionetes

Quanto tempo fazia desde o enterro ? Um ano ? Dois anos ? Quanto tempo exatamente , ele pensava enquanto fitava o alegre rosto de sua esposa no retrato de cabeceira. Quanto tempo ele não mais a tinha a seu lado e seus dias se tornaram uma espécie de mistura compacta, na qual não era a contagem de dias que se sucediam, como sucedia aos demais e sim ciclos de consciência e inconsciência , mesmo que em alguns deles ele estivesse de olhos bem abertos. Mas ele sabia que não poderia ser assim para sempre. Ora, não é a epítome do otimismo a frase ‘A vida continua’. Sim, ele sorri mais num esgar do que num sorriso propriamente dito, claro que continua, independente de que vida se entende por qualquer organismo unicelular ou pluricelular que apresente qualquer vestígio vital. Mesmo que não seja racional. Aliás, racionalidade é algo exclusivo dos humanos, mesmo que a maioria não o coloque em prática. Hum , pensamentos meio-sombrios hoje, “preciso falar com alguém, mesmo que seja sobre o tempo”, ele pensa. Aliás, o tempo é a coisa mais interessante que se possa conversar. Qualquer pessoa, independente da idade, ou quem sabe , até da época, se é desconhecida de seu interlocutor, é só dizer algo como ‘O tempo mudou hoje , não ? ‘ ou ‘Me parece que hoje está mais quente que ontem’ que a outra pessoa sente um conforto mútuo e prolonga a conversa para tentar tirar o mal-estar da civilização de se estar ao lado de algum desconhecido em algum lugar confinado, como os modernos elevadores, que não é muito diferente das caixas usadas para transportar animais, a diferença, neste caso, é que cabem mais animais. E isso gera a necessidade de diálogo. O engraçado e que se mais de duas pessoas estão no elevador, o silêncio perdura, porque que cena pode ser mais burlesca que indivíduos desconhecidos entre si, digam entre si ‘Nossa, hoje está quente’ , e as outras pessoas retruquem. Provavelmente isto levaria a um conflito, pois qualquer opinião dentre mais de duas pessoas é um confronto. Na qual sempre há os pseudo-vitoriosos e o injustiçado derrotado, pois este jamais assume em seu íntimo a derrota. Prefere pensar que as circunstâncias foram contra ele, do que analisar uma possível falha em si mesmo.

Ele toma então uma decisão. Não é possível que entre bilhões de seres humanos que relacionam entre si, ele não possa achar um mísero que tenha algum tipo de afinidade. A Natureza não poderia ser cruel o suficiente para deixá-lo agonizando, esperando que uma fatalidade qualquer o removesse dentre os vivos.

Procura na sua mente o nome de algum lugar, que em algum dia lhe disseram que era agradável, com pessoas bonitas e música divertida. Ele se levanta, se arruma e se dirige ao lugar.

Sentado no balcão do bar ele observa as pessoas. Pessoas que nunca se viram, sequer sabiam da existência da outra até aquele momento, entabulam conversas entre si, têm demonstração de carinho umas com as outras, como elas se conhecessem há anos ! Tão estranho o ser humano ! Afinal, que necessita para ser, do outro, de conhecer o outro, de ser principalmente aceito pelo outro. Então como se fossem marionetes, executam movimentos rítmicos e repetidos, como num dos antigos circos de horrores , em que as aberrações da natureza digladiavam entre si por um momento de atenção. Quão diferente somos, destes ditos ‘aberrações’ ? Se a mecânica é a mesma, ou seja, a procura do reconhecimento alheio, a procura de um conforto de nossas dores em outrem. Talvez ele encontrasse realmente alguém, alguma mulher desiludida por alguma nova experiência ou mesmo , presa de seu próprio círculo vicioso, procura-se a companhia de outro alguém, para novamente tentar ajustar-se com este novo alguém, depois desiludir-se, sofrer, e finalmente repetir o ciclo. É, o ser humano é masoquista por natureza. Tudo que procura fazer envolve algum tipo de sofrimento, sofrimento que é mitigado pelo miraculoso avanço da ciência que , ao invés de deixar aqueles que não se adaptam a sociedade , que ficam marginalizados e serem extintos por suas próprias inaptidões, são consolados por medicações sem fim, de forma que seu desaparecimento seja , no contexto social, algo mais ‘humano’ e ao mesmo tempo, que aliena àquele que pertence a esta classe, deixando que se extinga sem se aperceber, que não oponha nenhuma forma de resistência ou ‘desconforto’ à sociedade.

Seus pensamentos sombrios começam a tomar forma de se seus conhecidos fantasmas. Decide então que é o momento de se afastar. Levanta-se , o desconhecido no meio de desconhecidos, talvez ele ainda seja visto como desconhecido antes que os outros também o sejam visto desta maneira. Talvez alguns deles até acordem num lugar diferente, ao lado de alguém que é conhecido. Mas conhecido até quando ? Quando as brumas do ‘novo’ vão se aproximar e levar àquele ao qual se teve por alguns instantes ? Talvez no café eles conversem sobre banalidades, ou repitam o prazer extático da noite anterior, mas depois disto, a outra pessoa se torna um nome, para finalmente se tornar um nome esquecido na eterna bruma com suas vãs promessas de vida.

Retira-se após pagar e procura se situar. O que realmente ele quer ? Quem realmente ele é ? O que procura ? Tão fácil se criar perguntas, como se a resposta dissesse algo. Dinheiro, mulheres, fama e prazeres dos sentidos ? É isto que todos queremos ? É a isto que chegamos na tão afamada “Felicidade” ? Ora, qualquer medicação um pouco mais forte pode trazer estas mesmas sensações. Com a diferença apenas que não se percebe o que é ‘real’ ou não, mas ora, o que é realmente real ? A diferença talvez, é que no dia seguinte, se inebriado pela bebida, você acorde com seus cheiros corpóreos infectado pelo azedume de seu próprio vômito ressecado em seu próprio corpo. Não muito diferente da saliva que resseca , no canto de sua boca, se tiver vivido suas experiências pela medicação.

Pensamentos o assaltam se que ele consiga deter o fluxo. Ele precisa se sentir vivo de alguma maneira. E qual a melhor sensação do que a de ver a morte ? Ou quem sabe, de provocá-la , de alguma maneira. Isto o assustou, como poderia pensar de maneira tão tenebrosa, ora, a vida foi criada com valores únicos, e isto nós é ensinado até a exaustão. Mas, de certa maneira, há uma lógica nesta consciência. A dele, realmente foi criada com um valor único. A de não ter sentido. Lembranças do passado o acometem. Parte delas na verdade, porque é incapaz de lembrar o que aconteceu antes de seus sete anos. Talvez dimensionar estas como ‘buraco negro’ seja um termo muito fora de contexto, porque simplesmente não há nada. Sequer o indicativo de um vazio. Como se ao nascer, ele já fosse uma criança com seus sete anos. Plena, no sentido de ser sensações, capacidades e ser alguém, mas sem ter passado pela fase anterior e chegar à este ponto. No fundo , isto é até um pouco engraçado, suas sensações lhe passam que ele viveu somente dos sete anos em diante. A natureza e afins demonstrando o contrário, que absolutamente ninguém pode ter chegado à esta idade sem ter passado pelo crescimento anterior. Em que ele deveria acreditar ? No que é ‘natural’ ou no que ele percebe ? Afinal, faz diferença ? Talvez crie nele aquele conceito de conto de fadas, que a fada venha e transforme tudo numa coisa maravilhosa e que ele consiga chegar ao baile, ter o melhor futuro e viver feliz para sempre. Talvez ele descubra que é um príncipe perdido , que recuperado agora de sua memória, escondida por alguém muito mau, possa assumir feliz o cetro de poder. Ou, o que talvez seja o mais provável, ele vai descobrir o que não queira. Mas que é necessário. É como construir um edifício num velho cemitério. Nada com um tema mais obsoleto e conhecido. Mas as paredes, ah ! As paredes, elas estarão ali, para sussurrar crimes inconfessos por toda à eternidade. Até que algum dia alguém se levante e perceba, vá atrás, tente descobrir o que aconteceu ali. Algo há muito enterrado. Mas que estava ali. E aquilo, jamais traria descanso às paredes. Não somos muito diferentes de prédios, ele pensa. Todo dia pequenos pedaços de nós são marcados internamente, como o são os interiores dos prédios. Quadros novos são colocados sobre os antigos, novas pinturas são feitas, mas ali, ali embaixo está presente, mesmo que de maneira diáfana, mas se encontra aquilo que foi um dia importante. Ou que aconteceu. É como a nódoa de sangue, não dá nunca para apagá-la. Ela sempre fica lá, mesmo que para nos assombrar. Se seus olhos viram ou não que o farol estava aberto, que era o momento dele atravessar a rua, nunca saberemos. Mas afinal, que isto importa, se o resultado é o mesmo ?

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 30/03/2009
Código do texto: T1513904
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