Pesadelo - 1a. Parte

Sentiu quando seu próprio grito o acordou. Sentiu o som terminar num gorgolejar sem sentido, da mesma forma que seu pesadelo o tinha atingido.

Apesar de não ter sentido , seu corpo gritava, ao contrário , como se realmente tivesse vivenciado aquele momento. Passou a mão sobre seus olhos, para ter certeza que se encontrava na sua tão familiar cama e no seu tão sóbrio e austero quarto. Suas mãos, tremendo ainda pelo efeito de tal pesadelo, procuraram na primeira gaveta seu maço de cigarro que tantas vezes já dissera que não mais o fumaria. Lembrava até da última vez que estava sentando na cadeira do bar, no seu canto mais obscurecido, vendo o líquido diminuir de seu copo, enquanto seu pulmão engolia mais daquilo que anos depois o mataria de forma lenta e dolorosa, num funeral de tarde chuvosa, com ninguém mais de testemunhas, da partida deste mundo, do que o velho coveiro, seu cachorro e dois jovens que haviam vindo para participar de outro enterro, compadecidos com o trabalho do coveiro que sozinho, tentava enfiar o frágil e desbotado caixão numa fossa enlameada. Se viraram para tentar aliviá-lo , pelo menos por alguns instantes, de seu cansativo trabalho.

O cachorro latiu por instantes para os jovens, pois já idoso e ciente de sua fraqueza, sabia que somente poderia alertar que poderia ser perigoso, o que há muito já tinha ciência que seria incapaz de o ser.

O coveiro instrui os rapazes como seria a melhor maneira de colocar aquele objeto que de forma alguma expressava quem foi ou o que significou a vida daquele que o habitaria agora, ao menos até os vermes sentirem que havia nova carne podre para deleite dos seus. Para o coveiro, aquilo significava que ele poderia beber um pouco mais de sua pinga mais cedo que o costume, já que seu trabalho terminaria antes do que o planejado. Seu riso desdentado , quase como um miado, fazia seu cachorro começar a uivar, porque sabia que quando seu dono ria assim, ele ia pegar aquela maldita garrafa, sorver em grandes haustos e depois se tornaria violento, violento como o dia em que ele começou a praguejar palavras que, como cão, ele não compreendia, mas sentia o ódio nelas. Aquele ódio frio e cortante que o fazia eriçar seus pêlos de medo. Lembrou desta vez que o alterou para sempre, quando seu dono o chamou quase com um gemido e , vendo que este se encolhia mais e mais no canto, começou a gritar seu nome com comandos para que se aproximasse o mais rápido possível. Cabisbaixo, sabendo que no final aquilo não lhe seria bom, mesmo assim ele partiu resignado. Primeiro seu dono colocou a mão sobre sua cabeça , e com balbucios falava algo como se gostasse dele, como se ele fosse um cachorro valoroso e único. Aí ele viu que seu dono começou a descer a mão até abaixo de sua mandíbula, fazendo suaves movimentos, apesar de toda a aspereza de sua mão. Ele lambe a mão de seu dono, pois quer mostrar que apesar do medo que o comprime, ele acredita e se dispõe ao deleite de seu dono. Só quando com sua outra mão, seu dono quebra a garrafa, leva esta para sua frente é que ele começa a ganir baixinho, agora tentando se afastar de algo que sabe que pode machucá-lo e muito. Mentira seria dizer que a primeira estocada que ele levou em seu dorso não foi dolorosa. Sentiu como se um ferro em brasa tivesse penetrado na sua carne, queimando tanto interna, como externamente, num reflexo ele tenta morder aquilo que está fincado nele,mas a mão de seu dono se torna de ferro e impede que consiga liberar-se daquela dor lancinante. Ele chora baixinho , passando para um crescendo mais constante quando seu dono começa a dar sua risada de miado, a baba escorrendo pelo canto de sua boca com uma satisfação irracional enquanto lentamente vira a ponta de garrafa penetrada no animal, formando um desenho de sangue, na qual começa aos poucos descolar-se um naco de carne ainda quente pelo sangue que o irrigava. O pobre animal sente que o que seria sua consciência abandoná-lo, mas os gritos insistentes de seu dono não permitem que ele penetre na tão desejada escuridão que o levaria para bem longe daquela situação. Quando ele sente que seu dono afasta aquele objeto que o tanto machuca, ele gane baixinho, lambendo a mão de seu dono, sentindo o gosto azedo do suor de seu dono, misturado ao gosto acre do que sabe ser algo que pertence ao seu próprio corpo. Em sua mente não sabe o motivo que faz seu dono assim tratá-lo, mas sabe que sente muito, muito ódio daquilo que está dentro da garrafa, pois transforma seu (de certa forma tolerante) dono em uma coisa que o assusta muito. Mas o pior estaria por vir. Seu dono aproxima sua mão balbuciando algo , que se ele tivesse intelecto suficiente para entender, lhe seria pedidos de desculpa. Mas a alma de seu dono não estava mais ali. Estava ali o ódio ressequido de anos e anos de trabalho infrutífero e pequenos furtos de venda de ossadas despojadas de suas carnes. Se seu cachorro pudesse entender, saberia que aquilo estava acontecendo porque seu dono estava descarregando no mais fraco (como tantos de nós), a frustração de ter sido impedido no último minuto, de consumar seu desejo sexual, com a jovem menina de 15 anos que havia sido atropelada. Não importava que seu jovem corpo estivesse disforme, que sua testa era uma mossa funda e que isto havia rachado seu rosto no meio até seus lábios. O desejo do coveiro era tanto que sentiu prazer em beijar aqueles lábios rasgados, enquanto suas mãos tocavam nos seios púberes da jovem, demonstração do esplendor da juventude.

Quando sua mão desceu para tocar o virginal sexo do jovem cadáver, o guarda-noturno aparece como se simplesmente fosse o resultado de uma geração espontânea, gritando vitupérios para o coveiro, dizendo que só se juntara à ele pois lhe era compensador vez por outra adquirir ilicitamente dos cadáveres algumas jóias ou algum dente-de-ouro , mas que aquele abuso carnal com os que já se foram, ele jamais aceitaria e, levantando sua lanterna num gesto ameaçador procura afastar o coveiro de sua presa.

Guinchando como um rato, o coveiro rapidamente se levanta fechando o caixão, nem se preocupando de mostrar sua ereção e sim de se afastar para a segurança de seu casebre. Ele ainda houve os resmungos do vigia à distância, e seu ódio pelos vivos só se torna maior. Ao entrar em casa, corre para a miraculosa garrafa, para tentar saciar seus instintos.

Quando vê o cachorro, pensa que ali terá de outra maneira a satisfação que lhe é devida. Não será sempre assim a satisfação , pensa ele, por que somente ele não poderia ter prazer nesta tão injusta vida ? Porque o cadáver da jovem, rezado por todos para uma digna entrada nos céus, que só por sua roupa demonstrava que não deveria lhe ter faltado nenhuma coisa na sua formação não poderia ser, mesmo que por poucos momentos, seu objeto de prazer e desejo, visto que Deus não lhe presenteou com nenhuma qualidade, seja a efêmera beleza ou mesmo um intelecto relativamente capaz de pensar um pouco mais reflexão. Mas não , pensar lhe era difícil e doloroso, quando lhe passavam muitas informações, tudo se misturava na sua cabeça e ele só conseguia pensar no que ele poderia pegar daquele que estaria ‘partindo’. Há ! Doce ilusão desses patéticos que derramavam lágrimas e mais lágrimas condoídas. Eles poderiam ser mais espertos, muito mais espertos e ricos do que ele, mas ele sabe uma verdade que os outros não percebem. São os vermes, sim, os vermes gordos , rastejantes e com seus anéis espiralados que recebiam os mortos com todas suas honrarias em vida. Ele sabe o quanto o verme pode ser asqueroso quando começa a criar buracos na carne putrefata. Ele sabe o quanto as lágrimas dos vivos não serão sentidas pelos mortos, tanto quanto os gritos dos mortos não serão ouvidos pelos vivos.

Saindo de seu devaneio , ele começa afagar o animal para seu sádico deleite, ele olha profundamente para os olhos do animais e pergunta “Você entende ? Você entende por que eu faço isso com você agora ? Sabe a razão que você merece isto que lhe faço ? Se me entendesse , não me daria razão também ?” e lentamente começa a penetrar um caco de vidro no olho do animal, que geme e gane ao sentir uma dor tão lancinante. Neste momento o cão desmaia. E seu dono resfolega de prazer.

O cão sacode sua cabeça, tentando apagar estas lembranças tão dolorosas. Ele levanta os olhos para os jovens mais uma vez, pensando se talvez não seria melhor fugir com um dos rapazes.

(Fim da 1a. parte)

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 01/04/2009
Código do texto: T1517168
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