Primeira Vez

A primeira vez sempre é a pior. Não é fácil, não mesmo. Algumas vezes é proposital, têm um sentido de rito de passagem. Aliás, pensando bem, a grande maioria é um ritual de passagem. Lembra da sua primeira vez ? Engraçado, o próprio nome já se aplica, neste caso. No sexo. A primeira vez. Quando se deixa de ser menino para se tornar homem. Quando a infância não mais deve fazer parte e entra em cena o caminho da maturidade. Então, deve ser dado primeiro a recompensa. Depois a responsabilidade. Esta vai vir aos poucos. Mas virá. Mas antes, a transformação. É engraçado, quando se pensa em transformação, logo vêm a imagem da borboleta, do estágio de pupa para finalmente se desvencilhar e se tornar a borboleta. A imagem do pequeno réptil que junta forças para sair de seu ovo, não é possível de se usar, porque até então, ele nada era. Não pelo menos consciente. Já a borboleta foi uma lagarta. Como foi nossa infância. Uma lagarta. Qual é o sentimento que ele deveria sentir , quando finalmente sua família decidiu que era o ‘grande momento’ ? Que o varão tomaria forma de sua frágil figura de menino e assim permaneceria. O grande varão. O touro reprodutor. A vida, claro, tem suas dificuldades, mas prazeres, também os têm ! Então, para o grande varão a satisfação está acima de tudo. Mas algo deu errado. Só muito tempo depois ele foi descobrir isto. Quero dizer, logo depois ele percebeu que havia algo errado. Não anatomicamente falando, tampouco em orientação sexual. Não, nada disso. Mas havia uma ligação nele que lhe era desconhecida até então. A lembrança, não era de um paraíso idílico, no qual a carne se transverte em delícias. Oh não, era um açougue. Quando ele entrou naquela sala, não foi o desenho dos corpos que o atraiu, nem o cheiro do sexo barato, camuflado por camadas e mais camadas de desinfetante. Atrair é uma palavra injusta. Atrair se faz referente quando é algo que desejamos. Não foi o caso. O baque do que sentiu, foi do preço. O preço da vida. Ali, juntas, estavam histórias e mais histórias de vida, pessoas que passaram por situações que ele jamais conheceria, mulheres que, ao contrário que se diz, aparentavam ter uma vida um tanto quando difícil. Como transmitir a sensação de desgosto a qual ele foi atingido ? Um açougue, no qual ele selecionava a mercadoria para seu suposto bel-prazer. Neste momento, como um raio, ele foi atingido pela verdade que seria mais tarde, talvez sua maior benção, ou quem sabe, sua maior maldição. Ele não poderia deixar de amar. Amar era algo primordial. O amor é o que lhe movia. O amor é o que mataria. Naquele cubículo , onde mulheres riam risos tristes, porque o riso pode ser triste. Mas a tristeza, nunca poderá ser alegre. Amontoadas como carnes num depósito , cujas janelas mal permitiam entrar luminosidade, ali, ele se faria homem. Mas ali estava o papel da humanidade não ? Seja forte, ou nada seja. Seja o predador. O macho predador. Cantilena de séculos e séculos de existência, que até hoje, não se faz diferente. Ele lembra do sorriso voluptuoso de seu amigo, o instigando a selecionar uma das ‘presas’. O cérebro humano é algo engraçado. Bom, quando não é trágico. Não foi as formas de revista, de seios fartos, ancas largas e pernas grossas que o fez escolher. Nada disto. Foi a limpeza. Não porque ele achasse que elas fossem sujas. Mas porque assim ele se sentia. Podre. Mas ele não sabia de nada disto na época. Hoje ele sabe. Mas na época, ele só respondia aos estímulos de seu controverso cérebro. Por isso que o cérebro é engraçado, porque ele pode responder várias perguntas. Mas ele tem seu tempo. E quando você menos espera, pronto ! Eis sua resposta ! Não que necessariamente seja de grande valia, afinal, o passado não muda. Mas talvez mude o futuro. Enfim, sem o saber, ele escolheu a que tinha o sapato mais limpo. Absolutamente nenhum corpo ele olhou. Como poderia olhar ? No açougue, é pelo nome que ele escolhia carne para sua mãe, nunca reparou se determinada carne estava com melhor aparência ou não. Como poderia fazer isto, com pessoas. Sua vontade de gritar era ferrenha e persistente “Ei, são pessoas ! Vocês não percebem ? São pessoas ! Vejam, elas se mexem , falam e sentem ! Como vocês podem fazer algo por prazer, por consentimento que não é o de sentimentos ? Vocês são loucos ? O que você pensam ? Serei eu então o mais demente, porque participo desse ato tão degradante ? Como podem achar isso normal ? Como ? E pior, como consinto em participar disto ? “. Era um estupro duplo. Ele estupraria à outro e a si mesmo. O outro, talvez não mais se importasse, porque há muito o primeiro estupro deve ter ocorrido e a intolerância a levou onde estava hoje. Ele, consentia com sua passagem da infância para a adolescência com o estupro de si mesmo. Mas não nascemos pelo trauma ? Então, pelo trauma somos marcados, como plácidos bovinos. E isto, isto nunca se encerra, não ? É o trauma que nos ensina, nos limita, educa e perverte. Somos o que somos pelo trauma. Se ele fosse , seria forçar o estupro dele mesmo, se não o fosse, seria seu estupro social, estigmatizado como homossexual, num mundo que pouco se importa com sentimentos e sagacidade, e se importa somente com o predatório. Ele não pronuncia palavras quando seleciona a moça. Não podia. Não conseguiria. Ela sabe o caminho, sabe o que deve ser feito. Ela o leva para o caixa primeiro, afinal, quando pegarmos a carne do açougue, temos que pagar por ela. Ele tira o dinheiro do bolso e paga. Nenhum som sai de sua boca. No fundo, nem seu cérebro tampouco pensava em algo. Já não estava mais ali consciente. Somente seguia. Era o bovino de abate. Será que o bovino sente medo ? Resigna-se ? Não sente o cheiro da morte dos seus e segue apenas ? Não era muito diferente o que lhe acontecia. Apenas seguir o caminho, de um chão gasto por milhares e milhares de pés que se arrastaram por ali, a maioria com volúpia. Será que algum deles sentiu o que ele sentiu ? Não importa. Ele chega no quarto. Antes que palavras sejam trocadas ela já está nua. E aí ela pede “Você não vai tirar sua roupa ? Tire para que eu possa limpar você. “ Limpar você ? Como ? Se pudesse, ou se fosse hoje, ele riria, ao dizer : ” Me limpar ? Pelo contrário Moça, eu sujarei minha Alma aqui e esta nódoa vai me perseguir por muitos e muitos anos. Mais do que eu gostaria. Eu vou ter pesadelos por conta deste momento. Eu vou andar na rua, e vou imaginar seu rosto em pessoas, porque vou ter medo que você fale para todos que nada fiz ! Vou ter medo que todos descubram que eu me senti num açougue, que sou incapaz de qualquer coisa se não envolver sentimentos com a pessoa. Você percebe o que vai acontecer ? E o pior, a culpa vai ser toda minha, porque eu sou um bovino no abate. Incapaz de tentar fugir dos paradigmas impostos pelo mundo. Eu vou chorar noites e noites por isto. Vou viver como um ermitão recluso. Eu vou ser feliz , mas também vou ser triste. Neste momento, eu vou entrar na minha vida pré-adulta e vou sofrer por isto”.

Mas ele não disse nada e tirou sua roupa. E ficou ali parado. Ficou ali parado percebendo como o mundo poderia ser algo frio, quando você não é como todos.

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 13/04/2009
Código do texto: T1536686
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