Uma imagem vale mais que mil palavras

Uma imagem vale mais que mil palavras. Possivelmente. É nisto que pareço acreditar agora. Já reparou que os sonhos passam sempre em velocidades estranhas ? E que sempre acreditamos na última imagem que vemos ? Por isso que nunca gostei de velórios. Você pode ter amado a pessoa a vida inteira. Pode ter visto ela crescer , desenvolver ou mesmo envelhecer. Pode ter sido a doce anciã que você conhece como avó ou mesmo a criança que você chama de filho. Não importa. Não é dos biscoitos dela que você se lembrará, ou do sorriso dele, quando você o iça para alcançar o que lhe é desconhecido, que você lembrará. Nada disto. Você se lembrará do algodão em suas narinas. Você se lembrará daquela cor esquisita, da pele macilenta, de como é estranho vê-los ali, numa grande caixa, calculada com precisão aritmética, para que encaixe perfeitamente aquele que lhe foi tão querido. Suas lágrimas provavelmente escorrerão pelo seu rosto. Não porque você estará chorando por eles. Você estará chorando por você mesmo. Porque é incapaz de aceitar aquilo, ao mesmo tempo que nada pode fazer diferente disto. Aceitar. Inexorável. Esta talvez seja a palavra mais certa de todas as que utilizamos para determinar as coisas. Inexorável. Aquilo que não pode ser de outra maneira.

Quando era mais novo, ao ver meu primeiro velório, impelido pela curiosidade, visitei as salas onde outros finados eram mantidos. A cena não varia. É o morto, sempre ali, no centro do que deveria ser as atenções. Mas de certa forma esquecido. Seja pela religiosidade, seja pelos parentes e amigos que a tanto não se encontram. “Puxa, ele era tão jovem, mas seu vestido lhe fica tão bem, porque você emagreceu tanto ! Aliás, você viu como fulana engordou ? O que será que ela anda fazendo ? Será desgosto ?”. Mas que diferença fará para o morto ? Penso enquanto meus olhos o visitam. Frivolidades tão comumente enaltecidas em nossa vida, para onde vão, quando não mais as vivenciamos ?

Se eu pensar como um morto, não gostaria que ninguém me visitasse, creio que os mortos queiram o mesmo. Salvo aqueles que utilizam de sua morte como instrumento de vingança. Incapazes de resolver em vida seus problemas, recorrem à morte para impingir uma lembrança naqueles quais não o agradavam. Mas mesmo assim, será que o resultado é o esperado ? O adúltero o deixará de ser por isto ? O agiota largará de seus proventos em detrimento de uma pseudo ‘paz-de-espírito’ ? O apaixonado amargurará pela ausência de seu amado ? Não creio. Talvez por alguns momentos. Mas não por toda sua existência. O morto deve entender que não é desta maneira. Chegou o fim. Ponto. Começo, início e fim. Tudo é desta maneira. Prorrogar isto só traria graves conseqüências. O amor se transformaria em ódio, a excitação em enfado, a alegria em tristeza. Tudo perderia seu brilho. Tanto que é assim que penso nos mortos. É o fim. Não importa. Velá-lo ? Mas já se foi ! Aposto que se ele ainda pudesse conceber felicidade, escolheria com certeza a alternativa que as pessoas lembrassem dele com um sorriso, não com uma expressão nauseabunda.

Isto é motivo mais do que suficiente para me afastar de velórios. Mas há outros. A santidade. A morte denota uma auréola de santidade no maior dos criminosos. Este, passa a ser herói por ter passado pelo umbral. Sua vida pode ter sido extremamente perniciosa , dotada dos maiores vícios que a humanidade possa enunciar. Mesmo assim, naquele momento solene, como por encanto, tudo se desfaz, como se nunca aquela bela e maravilhosa criatura pudesse um dia ter feito algo de ruim a alguém.

Mas afasto-me de meu sonho. Ou será este um pesadelo ? O que torna um sonho em pesadelo e vice-versa ? Não gritamos em nossa vida, tantas vezes, que vivemos um pesadelo e, mesmo assim minutos depois estamos sorrindo com o mais exaltado dos semblantes, vivendo um ‘sonho’ ? Somos criaturas estranhas afinal. A mesma mão que é capaz de acalentar, pode também lanhar. O enlevo do carinho têm a mesma força, contrária, do ódio avassalador. Sorrio ao pensar em quantas vezes me determinam como resultado de atavismos e ações do meu metabolismo químico. Aliás, este seria o maior progresso humano afinal de contas. Alguns ‘Iluminados’ determinariam toda a razão de existência humana. Precisamos apenas controlar estas taxas de substâncias de nosso organismo e pronto, seremos as mais felizes e completas criaturas do Universo. Amor ? Ora, simplesmente uma série de conexões químicas em intrincadas fórmulas que, pelos nossos sensores táteis, auditivos, visuais e olfativos, transformaremos a criatura na nossa frente na nossa razão de existência. Pelo menos pelos meses subseqüentes, afinal, a paixão têm um tempo também para existir. Me lembra um supermercado isto: “Leve duas paixões e pague uma, garantia de seis meses de alegria”. E aí, nas letras miúdas está escrito que não há garantias de que a pessoa amada corresponda, ou que a paixão fique exatamente este período, afinal como um produto químico , pode haver pequenas variações. E aí, voltamos novamente para este supermercado de sensações e pegamos outra, e outra e mais outra. Até que finalmente descobrimos que envelhecemos, que continuamos incompletos, mas que agora nosso tempo se foi. Não temos mais o viço da juventude, nem seus sonhos. Temos dor nas costas, cansaço e manias. Muitas manias. Até demais. Sabe porque a maioria dos idosos implica com as crianças ? Não é somente por serem ranzinzas. É porque invejam. Invejam o tempo que poderiam pular despreocupadamente, invejam o tempo que poderiam se sujar sem ser pela incontinência, invejam a facilidade que a dor vai embora, quando do machucado. Invejam o brilho de vida nos olhos das crianças. E isto forma um bolo em seus estômagos, e este bolo queima, mais forte que a imagem de beleza e vida que a criança pode lhe trazer. Creio que isto faz as pessoas serem um pouco cruéis. Quando chamam a criança para gritar ou mesmo bater, simplesmente tentam parar com a dor que sentem, machucando. Chamamos isto de desumano, mas quanto de nós não fazemos isto ? Alegamos o quê depois ? Que a criança nos importunou ? Que ela mereceu ? No fundo sabemos que estamos errados, mas afinal, somos velhos e só o fato de sermos velhos, somos sábios não ? Não temos mais que prestar contas do que achamos e pensamos, afinal, ninguém nos presta atenção mesmo. É um ciclo engraçado o da vida. Deus há de ser um comediante afinal ! Pois quanto mais envelhecemos, mais amargos nos tornamos. E isto, no mínimo, é engraçado , ou pelo menos, de uma certa comicidade trágica. Talvez por isso acredito tanto na imagem. Sentado aqui, neste banco, eu aprecio o espetáculo da vida, apesar que agora está se tornando um pouco mais difícil manter os olhos abertos. Afinal, na prescrição havia dito um comprimido ao dia. “Tome um comprimido e seja feliz. Mas tome todo dia”. Engraçado ver sob esta ótica, então eu sou feliz. Mas sou feliz porque minha pílula de felicidade é diária. Bom, talvez o médico não tenha percebido que eu queria ser muito feliz. Caso contrário, não teria me receitado três caixas. Como poderia resistir ? “Seja imensamente feliz....para sempre”. Bom, é isso. Poderia descrever qual foi a minha última imagem, mas no fundo, o que importa ? Afinal, a imagem realmente não importa. O que sentimos, é o mais importante. Ou era pelo menos.

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 06/05/2009
Código do texto: T1578563
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