UMA CARTEIRA DE DINHEIRO

Guilherme era um bom motorista. Iniciou naqueles tempos de estradas ruins, caminhões piores ainda e quem não era bamba mesmo na caixa de marcha arranhava todas, quando não deixava apagar o motor e acontecer desastres até fatais. Ou você era mesmo um profissional ou melhor seria fazer outra coisa, pois chofer barbeiro, algumas vezes, tinha passagem abreviada para o outro lado.

Começou dirigindo aqueles caminhões de brinquedo a que eu já me referi, lá de baixo daquele porão. Alguém já deve ter lido e se não leu, também não perdeu nada. Depois ele foi dirigir caminhões que carregavam leite para a cooperativa em latas a granel e posteriormente caminhões tanques.

Estradas sempre de terra. Se estivesse muito seco poeira que não acabava mais e se chovia, lameiro, carro agarrado, caminhão na valeta e aquela vontade doida de sentar na beira do barranco e chorar. Vida dura. Muito dura!

Pior ficou quando iniciaram a retificação e asfaltamento da estrada que liga Cordeiro a Macuco. A gente não sabe muito bem o que se passa na cabeça de certos profissionais, porque mexer em estrada de terra em pleno período de chuvas é dose! E não é pra leão não! É pra burro! Era lama para ninguém botar defeito e o Guilherme tinha de enfrentar aquilo dia sim, dia não. Levar aquele monstrengo de caminhão para o Rio e ainda não demorar muito, pois o produto era perecível.

O diretor da cooperativa era um senhor de uma competência administrativa e honestidade intocáveis, um pouco ingênuo, de certo. Mas de caminhão... Meu Deus do Céu! Ele não entendia absolutamente nada e, pior! Gostava de dar palpites. Além disso, gastar era uma palavra que não constava do seu vocabulário. Administrava aquela cooperativa como um mão de vaca assumido. A cooperativa tinha de dar lucros porque tinha e pronto!

Pois foi num dias desses, chuva pra "dedéu", ele resolveu ir também ao Rio resolver negócios. Logo, logo, bem não tinha ainda quase saído da cidade, o caminhão atolou. Mas atolou para valer mesmo. Acelera daqui, acelera dali e nada! O homem resolveu descer para ajudar. Pegaram umas pedras, colocaram à frente dos pneus, de um lado, depois do outro.

Guilherme subiu ao seu posto, engatou a primeira marcha e acelerou forte. Pneus girando, atrito nas pedras, fumaça, cheiro de borracha queimada e lá vem o diretor correndo, escorregando, quase caindo, gritando que nem um danado:

- Para! Para sô menino!

Ele tinha a mania de chamar quase todos de menino.

- O que foi seu Neco?

- Você tá estragando os pneus todos! Não pode, sô menino!

- Mas se eu não mandar pau aqui este caminhão não vai sair do barreiro não, sô Neco!

- Pera aí! Pera aí! Devagar! Não tem um jeito do menino não forçar demais os pneus?

- Tem sim, sô Neco. Espia lá agora!

E o Guilherme, gozador nato, colocou a alavanca das marchas em ponto morto e pisou fundo no acelerador. Fumaça só do escapamento.

- E agora sô Neco, os pneus tão queimando?

- Tão não, sô menino. Mas também a roda nem mexe!

Bem, não sei exatamente como saíram dali, mas continuaram a viagem. Devido aquele transtorno, já chegaram à baixada quase anoitecendo. Lusco-fusco, naquelas horas do dia que farol não ajuda muito, mesmo porque naturalmente já eram muito ruins. Lá foram. Conversa vai, conversa vem, sem piadas ou brincadeiras porque o homem era muito sério, de respeito. Guilherme freou forte e disse para o seu Neco ter visto uma carteira cheiinha de dinheiro à beira da estrada, logo ali atrás.

Não muito rápido como deveria o diretor desceu, deu a volta e foi em direção aonde estaria a carteira. Não era. Somente uma pétala do umbigo de um cacho de bananas. E daí para frente o papo, iniciado pelo Guilherme, claro, para implicar, troçar do seu Neco, foi de como eles dividiriam o dinheiro, se a carteira fosse verdadeira.

- Eu acho que deveria ficar com mais da metade porque o senhor não viu nada e a carteira ia ficar para outra pessoa achar!

- Não, sô menino. O dinheiro ia todo pra cooperativa, porque o caminhão que trouxe a gente até aqui pertence a ela. Se não fosse pelo caminhão, nem eu e nem o sô menino ia achar nada!

- Caminhão não enxerga, caminhão não sabe o que é dinheiro, caminhão não precisa de dinheiro, sô Neco. O senhor viu, ó! Se eu não pisasse no freio, ele ia que ia, nem tava ai! Burrão! Eu não dou nadinha pra caminhão nenhum! Depois a gozação vai ser grande! Todo mundo sabendo e me chamando até de besta, de otário e com muita razão! De “jeito maneira”!

Guilherme até fingia estar ficando meio zangado com a história e dava uma entonação mais ríspida às palavras.

- Nós não podemos ficar com um tostão!

Agora o papo já fluía como se realmente eles tivessem achado uma carteira de verdade.

- Olhe sô Neco! Eu até concordo do senhor ficar com a metade, mas vamos parar com essa ideia de caminhão entrar na sociedade. Ah! Sociedade com caminhão! Já se viu! Doideira pura e das grandes! O senhor tá falando de verdade? Arriscou o Guilherme, agora até já com mais intimidade, porque também já se considerava até sócio do diretor.

- Sô menino! Eu acho que a proposta que está me fazendo é roubo. Eu até não queria falar assim não, mas se estamos no caminhão da cooperativa, achar dinheiro e ficar com ele? E o que os cooperados vão falar de nós?

- Mas sô Neco! Sô Neco! (Guilherme meio impaciente, falando pausado). Caminhão não sabe falar, homem de Deus! Só se o senhor fraquejar, porque eu não vou abrir o bico! É a oportunidade para eu comprar um carrinho, arrumar a casinha e a do senhor poder ter aquelas vacas holandesas lá do Passa Quatro! Montão de leite que aquilo dá! Virgem Maria! O senhor mesmo falou que nunca tinha visto vaca dar dez litros de leite! Disse para ver se animava o senhor Neco a dividir o dinheiro.

- Ah! Mas se nós dois aparecermos com aquela dinheirama toda e aquelas vacas do Passa Quatro, todo o mundo vai desconfiar... Não vai ficar bem... Não acho certo!

- Tá bom, sô Neco! Tá bom! Vamos fazer o seguinte: pode dar todo o dinheiro para o caminhão!

He! He! He! Riu baixinho o encapetado Guilherme, continuando a viagem. E o seu Neco, sem dizer nada, deve também ter sentido vitorioso por tê-lo convencido. E ele continuou imaculado mais uma vez, mesmo que tenha sido só num ingênuo faz-de-conta.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 07/05/2009
Reeditado em 07/05/2009
Código do texto: T1581270