O lento passar do tempo.

Ele se lembra quando ganhou o relógio. Não tinha sequer 8 anos. Mas as palavras de seu pai foram gravadas em sua mente. "Com isto, meu filho, você verá que sempre há tempo, sempre, desde que você nunca se esqueça de dar corda". Foi o 'tic-tac' que o encantou. Não que o relógio fosse feio, o que seria uma inverdade. Hoje, com os ditames de regras para acessórios, com certeza aquele pequeno relógico de pulseira vermelha, mostrador com os quatro principais números, como os quatro pontos cardeais, sendo as demais horas pequenos pontos dourados, não fosse considerada uma jóia única, como também originalmente não se propunha à isto, visto que era um relógio criado em série como tanto os outros o são. O termo 'passar horas' para ele se tornou uma verdade, pois ele as via, no pequeno mecanismo que tinha a sua frente, os minutos correndo atrás de um finíssimo fio dourado, que ditava os segundos. Este, parecia fazer todo o trabalho, porque ele conduzia o resto. Se não fossem os segundos, não haveria os minutos e , as horas nunca existiriam se não fossem a lenta passagem dos minutos. Nestas horas em que, absorvido pelo mecanismo, ouvia seu incessante ruído, ele se apercebeu de uma coisa que creio, todos nós um dia iremos perceber cedo ou tarde. Não foi a última coisa que percebeu, mas foi uma das mais importantes. O tempo não se faz só de segundos. O tempo se faz pelo movimento. Uma pedra, calcada num calçamento, de que lhe importa o tempo , se ela ali ficara engastada por toda a eternidade ? Ela não o percebe. Mas nós também não. Não como deveria ser, se fosse ditado pelos segundos. Ele lembra quando estava sentado próximo à menina que tanto o encantava. Ele lembra de seu sorriso e o jeito de conversar com as pessoas. Ele lembra que via pessoas se aproximarem dela, quase como em uma velocidade diferente , conversando e estabelecendo uma comunicação. Nestes momentos, o tempo não seguia as regras e se tornava etéreo, quase como estivesse parado. Se não fosse o ouvir de suas próprias batidas do coração, jamais diria que tivesse passado algum tempo. Mas ali, no seu pulso, o relógio fazia os segundos avançarem inexoravelmente, registrando com a mesma força e dedicação cada segundo , sem se importar se o seu suposto dono, estivesse ou não ignorando-os. E assim, ele se via acordando como de um sonho e vendo que o tempo há muito já havia escapado de suas mãos. A frase que deveria ser escrita é 'muito tempo se passou'. Mas, quanto deste tempo realmente ele o sentiu ? Ou viveu ? E aí, foi a segunda e talvez mais importante coisa que percebeu. Ao olhar aquele rosto que o fitava no espelho, o que tinha ali que o relembrava de sua infância ? O que ali havia que contava os momentos que passou de alegria ou de tristeza ? Será que aquela pequena cicatriz que ele tinha sob o queixo, era a mesma de quando, brincando com seu irmão de mocinho e bandido, seu irmão , para evitar que o mocinho o pegasse, virou a arma de metal, dotada de um mecanismo para implosão de espoleta, bradando esta como um instrumento de guerra, o atinge fortemente no queixo, fazendo-o ver pequenas fagulhas esbranquiçadas tomarem formato de minúsculas listras coloridas e, logo depois sentir um formigamento estranho e , ao levar lentamente a mão, sentir que há algo ali em seu rosto , que têm um cheiro extremamente marcante, pungente, um suor muito mais denso. Ele lembra que levantou sua mão frente aos seus olhos. E através de seus dedos ensanguentados, ele vê, numa velocidade quase tão lenta quanto a queda de algo de peso próximo ao do ar, a risada sardônica de seu irmão. Seus olhos então se desfocam de sua mão e , com as manchas formadas pelos seus dedos ensanguentados, vê ali no meio, o júbilo de seu irmão. Ele não entende o que o irmão fala, entre risos, mas o som é de algo pesado, como se fossem árvores despencando. É como se fosse um rasgo no céu. Ele não sabe quanto tempo ficou desacordado, nem como foi carregado pelo seu pai até a casa e depois levado ao hospital para tratamento. Entre os lapsos de sua consciência, ainda pode ouvir a voz de seu irmão falar que 'foi um acidente, ele escorregou', afinal, ele havia sido a única testemunha. Muito tempo se passou, talvez não anos, mas com certeza meses. Até o aniversário de seu irmão. Era um dia festivo, afinal, seu irmão começava a galgar os degraus da adolescência. Todos as crianças brincavam do lado de fora da casa, pela calçada, correndo e rindo até um fétido lixão , que ficava ali próximo, num terreno que tinha um desnível bem pronunciado. Ele não se lembra bem o que o motivou, ou como aquilo se criou. Mas ali, naquele lixo fétido, ele viu um velho colchão de molas, na verdade, só as molas enferrujadas do colchão. Era como um esqueleto de um velho dinossauro. Ele conseguia ver com clareza, apesar de ser o fim-da-tarde, cada um dos formatos das molas, cada intricada trama que formava o colchão. De novo, o tempo se tornou lento, e ele viu seu irmão passando rindo por ele. O tempo, mais uma vez se tornou lento, congelado em seus mecanismos, como um relógio que tivesse ficado sem corda. Ele simplesmente esticou suas duas mãos para a frente, ele viu a incredulidade nos olhos de seu irmão e, aos passos trôpegos ele começar a cair, cair para o pequeno abismo que tinha atrás dele. Seu irmão procura virar o corpo, para tentar evitar cair de costas. Acho que os gatos devem tentar fazer o mesmo. Talvez seja o medo do nada, do que virá. Mas a visão do que virá, às vezes, pode ser pior. Será que há algo relacionado a covardia ? Ele lembra do seu irmão também esticando suas mãos, só que agora para afastar do seu corpo do que viria. Ele vê quando o metal se mescla à carne de seu irmão. Ouve o grito apesar de ser algo mais sentido que realmente ouvido. Ele vê os pequenos fios-de-sangue se formando nos braços e antebraços de seu irmão. O tempo então, volta à sua velocidade e ele sai gritando 'Meu irmão caiu, por favor, ajudem'. E eis a grande questão. Ele realmente queria que ajudassem seu irmão, queria que o tirassem dali. Não queria vê-lo sofrer, apesar de saber, que ele era o motivo de sofrimento de seu irmão. Ele lembra de sua mãe chegando desesperada, gritando por ajuda, retirando seu irmão que não parava de chorar, lembra de sua mãe com uma toalha limpando o sangue de seu irmão, enquanto jogava álcool no ferimento, para tentar limpar as feridas. E ele lembra do grito de sua mãe perguntando o que havia acontecido e sua voz, traída pela própria emoção da dor de sua mentira, "ele caiu".

Muitas vezes , com o passar dos anos, ele pediu perdão ao seu irmão, pois ele realmente se arrependeu. Mas isto o marcou por um motivo. Ele foi capaz de fazer isto. Ele foi capaz, não por acidente, de não ser o mocinho. De ser alguém mau, de ser o bandido. Ele sabia que o colchão estava ali e que machucaria. Mas não parou. E não foi capaz de parar. Até que ponto ele pode chegar ? Até que ponto ele pode machucar alguém , se a quem ama, foi capaz de tal atrocidade ? Ele se olha pela última vez no espelho, tira o relógio de pulso que o acompanha há tantos anos. E segura seu mecanismo. O relógio para quase com um suspiro. Parece que ele se sente aliviado de não mais ter necessidade de contar os segundos. Ele o retira do pulso. Coloca-o mansamente na pia de seu banheiro. Ele sabe que agora não precisa mais contar as horas. Porque afinal, ele sabe que esta é a última.

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 13/05/2009
Código do texto: T1592111
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