O Canarinho Branco

Papai costumava se espelhar em passarinhos. Na nossa casa antiga, havia um terraço de lajotas cor de caramelo onde ele pendurava gaiolas, cada uma com um pássaro colorido de olhos pretos e frios. Lembro-me das tardes de sol em que os bichinhos cantavam de alegria amarela. Já os dias de chuva eram de silêncio misterioso – de quando em quando, trinavam baixinho, ansiosos. O barulhinho deles se confundia com a melodia da garoa. A cantoria amorosa contrastava com os olhos arregalados e assustadores.

Havia um passarinho branco que era um canário-do-reino. Papai apelidou-o de Reino. Um dia, confessei que tinha uma quedinha pelo bicho. Gostava muito de sua brancura e achava que ele era um pedaço de nuvem. Papai disse:

- Pois agora o Reino é seu!

Ele não sabe, mas salvou minha infância com essa doação. De nada serviram os intermináveis discos infantis que me dava de aniversário e Natal, pois foi Reino quem fez trilha sonora da minha infância.

A gaiola de Reino era minha televisão. Adorava observá-lo comer alpiste, beber água, cantar e espreguiçar as asinhas. Era lindo demais quando ele as abria – parecia um pássaro grandão, assustadoramente doce. Ficava horas apenas reparando em cada detalhe. Seu bico rosa, os olhos pretos que me davam arrepios, as garras malvadas de passarinho bom. O melhor de tudo é que nada disso tinha intervalos comerciais.

Uma noite, sonhei que passeava com Reino no ombro. Ele cantava muito alto em meu ouvido, e era bom. Acordei e vi que papai havia pendurado a gaiola de Reino na janela do meu quarto. Era uma manhã outonal – o sol entrava cheio de rendas e se deitava pelo meu edredom. A presença de Reino era mágica, como se fosse uma visita muito importante e pomposa. Ele era o senhor do meu reino. Seu canto era um hino às manhãs sem aula.

Um bicho é para a criança o que a bondade é para a humanidade. E Reino era a minha paz branca. Era o mar calmo que ainda não conhecia o furacão da adolescência. Reino emprestou para mim as asas que eu não tinha e fez de mim uma criança completa – me elevou ao nirvana infantil. Meu coração era feito de penas.

Mas Reino também era impulsividade. Ele não vivia conforme as leis de higiene humanas. Sujava as paredes e botou no negativo a paciência inexistente de papai. Ele quis se livrar do canarinho branco.

Quando me avisou que abriria a gaiola, ouvi claramente meu coração se rasgando, do mesmo jeito que se rasga uma linda toalhinha de Natal bordada. Foram as minhas primeiras estrias. Fiquei cega de lágrimas. Tonta pela onda repentina. Levei um soco da maturidade alheia. Perdia um ente querido. E papai não dava conversa. Minha insistência era triturada com seu olhar aterrorizante. Mas ele também tinha coração de pena: deixou que eu mesma soltasse Reino.

Eu teria que abrir de vez o meu coração já aberto, antes de abrir a gaiola.. Abri-lo porque, através dele, Reino conheceria o céu, a terra, e tudo o que há entre o azul e o verde. O canário tornou-se adulto muito antes que eu – suas penas internas tornaram-se douradas antes das minhas.

No terraço, papai tirou Reino da gaiola, com suas mãos calosas, e passou o passarinho desesperado para minhas mãozinhas lisas e moles. Uma asa trêmula escapou pelos meus dedos. Foi a faca que me fez gemer de agonia.

Com a visão embaçada por lágrimas agridoces, franja e melancolia, andei com Reino até para fora do terraço. Avancei pelo gramado. Não sabia se deveria jogá-lo, para que fizesse um mergulho triunfal na liberdade, ou se deveria depositá-lo delicadamente na grama. Por um segundo, acreditei sentir seu coraçãozinho louco, explodindo junto com o meu. Não houve despedida: abri as mãos, ele espreguiçou as asas e jogou-se para o céu. Virei as costas, entrei em casa e avancei também pelo triste vale da adolescência.