Sentimentos

Ter sentimentos é algo um tanto quanto complexo. Quando o temos, sentimo-nos em estado de elevação espiritual tanto quanto podemos sentir um desespero até então nunca sentido. Mas e quando não sentimos mais nada ? Creio que esta é a pior sensação. A palavra para se descrever isto, se procurarmos num dicionário , é embotamento. Sentimo-nos embotados, simplesmente não conseguimos sentir nada. A primeira sensação que temos é tristeza por isto. Afinal, quem não gostaria de sentir ao menos alguma coisa ? Será possível simplesmente deixar-se abater tanto que se é incapaz de qualquer reação ? Lembro da primeira vez que vi a perna de uma rã convulsionar-se quando se colocava sal nela. Eu não conseguia desgrudar meus olhos daquela coisa tão insensata e impossível. Como, destituída de todo o organismo, uma simples perna poderia mover-se ainda ? Visão tão grotesca ficou arraigada no meu cérebro. E por muitos anos, muitos ainda, aquilo se tornou quase como um ritual xamanistico para mim. A vida, ou o que quer que aquilo fosse, simplesmente ainda dava sinais de existência, mesmo que não de uma existência completa. Aprendi isto a duras penas, enquanto levava comida para minha mãe. Aquela massa quase amorfa, de uma cor acinzentada, como eu temia as batidas do relógio para me aproximar dos momentos que deveria me aproximar para levar a comida. Eu poderia estar fazendo qualquer coisa, mas ali, tal qual o coração delator, estava o relógio que me chamava à minha sina. O ritual não variava, não se acrescia nenhum ruído extra ou mesmo alguma expectativa diferente. Sempre o mesmo rito. Sempre o mesmo caminho. Sempre. Acho que foi aí que minha mente começou a ficar embotada. Quando queremos esquecer algo que nos é traumático, embotamos. Ficamos seguros nessa nossa prisão de nós mesmos, nos quais os sentimentos não se expressam. Muito tempo depois eu percebi o quanto foi ruim isto.Infelizmente não a tempo de salvar minha alma. Talvez só a tempo de poder olhar pra trás e , por um instante, imaginar como poderia ter sido diferente.O quanto eu poderia ter amado, sorrido e descoberto as alegrias que permeiam a vida. Veja, não reclamo de minha existência, apenas constato que poderia ter trilhado caminhos de alegrias diversas. Talvez digam que eu sou cruel, que sou incapacitado mentalmente ou mesmo um demente. Não levantarei minha voz para me defender, nem para contestar. Não faz diferença. Caracterizam-me como lhes aprouver. Creio que todos gostariam de ouvir algo como "Foi prazeroso, amei sentir sua vida esvaindo por seus cortes, gostei principalmente de arrancar sua cabeça" e outros detalhes apavorantes. É isso que as pessoas esperam. Que o monstro mostre sua sede de sangue ou que o arrependimento o torne a mais agradecida criatura de ser salva. Tolos. Como posso explicar que eu nada senti ? Como posso lhes dizer que não foi por prazer ou mesmo por algum deturpado desejo sexual ? Apenas queria entender se tudo me deixava realmente embotado. Se não haveria uma solução para essa sensação sempre presente de vazio. Mesmo 'vazio', creio que não se aplica. Eu lembro que eu vaguei por um bom tempo , durante muitos e muitos meses. Quando eu olhava para o rosto das pessoas, eu via apenas a indiferença. Cada uma preocupada tão somente com sua vida e seu tempo. As pessoas, não conversam. Se o fazem, é apenas pela necessidade ou a obrigação do momento. Aquela pessoa que entra no elevador, sequer olha no seu rosto e lhe despeja um 'bom dia' ou outro cumprimento qualquer, sequer têm noção de quem é você, a não ser talvez, a pessoa que lhe atrasou, porque ela vai ter que abrir a porta do elevador pra você ou , vai ter que esperar que você o faça. Algumas vezes sinto vontade de redargüir "É o que realmente você deseja ? Quer mesmo que meu dia seja bom ? Puxa, gostaria verdadeiramente que o seu o fosse". Mas sei que estamos no circo. Sei que somos como velhos carros de um ultrapassado parque-de-diversões no qual nossa ação está presa num caminho pré-definido. E fingimos nos assustar e nos emocionar com aquilo. Talvez até nos assombre de verdade. Mas não mais que por alguns segundos. Eu lembro quando a vi pela primeira vez. O que me atraiu mesmo foi seu olhar de tristeza. Aquele olhar lânguido, perdido, que tantas vezes já tinha visto. A tristeza realmente consegue desenhar coisas que a alegria não consegue. O móvel feito pelo marceneiro, que é todo perfeito em suas formas, não suscita tamanha sensação se o vemos com alguma falha, seja estrutural, seja pelo tempo. Aquilo fica em nossa mente. A função em si não vai ser atingida. Mas os nossos olhos não conseguem separar-se daquele entalhe falho. Aquilo vai nos acompanhar e até assombrar nossos dias. Era algo tão pungente, tão único, desolador até ! Eu não sabia o que iria acontecer. Só seu que seu olhar era fascinante. Um dia, sempre o há não ? Um dia, e aqui me sinto tentado a dizer 'por acaso', mas o que é realmente o 'acaso' ? Acaso é quando você simplesmente se encontra numa situação não formulada, criada ou repensada por resultado direto de nossas ações. Mas há isto mesmo ? Se eu nunca tivesse a fitado, será que um dia a teria encontrado e travado conhecimento ? Creio que isto seja um tanto quanto impraticável. Talvez ela imaginasse que foi o acaso, porque quando ela percebeu que eu a estava fitando, seu olhar percurstou-me com uma interrogação. Afinal, quem eu seria para fitá-la de uma maneira tão estranha, porque meus olhos, tendem a não ser como a neutralidade das pessoas. Eu olho, com um misto de curiosidade e amor. Sim, porque eu gosto de amar. Gosto de amar as pessoas, quando as entendo. Quando eu vejo a tristeza nublar seus sentidos. Eu não sei se amo a pessoa, ou a tristeza que a pessoa carrega em si. Talvez eu nunca descubra isso, pensando bem, posso dizer com certeza que nunca irei descobrir. Penso se houvesse descoberto. Teria me feito diferente ? Quando sabemos de algum fato sobre nós mesmos, isso nos torna diferentes ? Ou o caminho permanece o mesmo , talvez numa espiral-descendente? Refrearíamos nosso próprio comportamento se soubéssemos coisas de nós mesmos ? Ou deixaríamos nossa própria natureza seguir seu curso afinal, pois somos o que descobrimos sobre nós mesmos. Muitas dúvidas e questões permanecem sem resposta e assim o ficarão. Sei que no momento que ela me direcionou o "oi" me senti alvejado por uma seta de metal, trespassando dolorosamente meu peito, pois é muito mais fácil a divagação da imaginação do que algo real. A realidade não é necessariamente ruim, mas desconcertante. É como se de todas as possibilidades imaginadas, pensadas e repensadas, somente um caminho pudesse ser seguido. É o inicio do fim. Porque toda realidade, encontra seu fim. É como se a criança que aponta para a Lua e a imagina de queijo, um dia , ao ler um de nossos valorosos compêndios científicos, percebe que esta é somente um frio fragmento exagerado de pó e pedra. Naquele momento, algo dentro da criança morre. Nunca mais vai subsistir. É como o encantamento que escorre, revelando a face triste e disforme da realidade. Não há queijo, não há sonho. Apenas pedras. Senti algo parecido com isto. Sequer consegui balbuciar uma resposta. Meus lábios cerravam-se sobre si mesmos, meu coração palpitava numa cadência irregular, sentia como se um ar frio gelasse todo o sangue de meu corpo. E me senti um completo idiota. Um puro e simples idiota. Idiota é aquele que não sabe agir. Hoje, dizem que é cruel chamar as pessoas de idiota, talvez até o seja, mas como posso declarar o comportamento de uma pessoa que é incapaz de agir numa situação ? Ali, preso em mim mesmo, não conseguia esboçar qualquer reação. Acho que foi a frase tão comum "Está tudo bem com você ?" que me fez pensar que tudo é meio cíclico. Não há como alguém perguntar se você está bem , se antes não tiver iniciado algo com um 'oi' ou um 'olá'. Era o curso do diálogo. Uma pantomima executada por todos nós, como uma preciosa construção para algum objetivo. Afinal, existe o diálogo sem objetivo ? Este procura aproximar as pessoas, tão díspares entre si. Procura criar os laços de envolvimento, sejam profissionais, sejam pessoais. Claro que no inicio, vamos responder da melhor maneira, pois temos que mostrar o que gostaríamos, não necessariamente o que somos. Isto vem com o tempo. Se é que o vêm para todos. Escondemo-nos atrás de máscaras, diálogos, gestos e ações. É peculiarmente humano, creio eu.

Temo que meu tempo se escoe, não poderei falar muito sobre o ocorrido. Mas foi o olhar. Meses depois, aquele olhar de um dia. Um olhar de desesperança, de total aniquilamento frente à existência. Ela não iria me ouvir, se é que eu falaria algo, afinal, eu sempre ouvia e raramente emitia qualquer comentário. Mas foi o olhar dela. O engraçado é que não havia lágrimas. Somente a certeza. E o pedido. Não que isto fique ecoando em minha mente, porque fiz o que julguei certo. Quando fazemos o que julgamos certo, não há consciência que nos perturbe. Há somente a certeza. Como havia nos olhos dela. A palavra foi um sussurro, não mais que isto. "Liberte-me". Toda a implicação de seu olhar e desta palavra, crê que ela saberia que eu seria capaz de executar. Não que eu já o tivesse feito. Mas é uma certeza também. Como o ato de beber água. Apenas, você sente que deve ser feito. E eu o fiz. Pura e simplesmente. Depois fiquei sentado do lado do corpo , sem me mover. Eu acho que estava triste, porque eu não veria novamente aquele olhar. E sabia que não o encontraria novamente.

Ouço o ruído da abertura da minha cela. Sei que é o momento. Engraçado, o meu pedido deve lhes ter parecido estranho. Eu pedi somente que me vendassem antes de chegar ao local. Não é medo que minhas órbitas espirrem, que é o que provavelmente ocorra. É que não quero ver as pessoas que ali estão. Não quero ser o objeto de um circo. Quero apenas ir-me, como me é agora, por direito. Sem ressentimento a ninguém, sem raiva, rancor ou ódio. Não quero também sentir o ódio das pessoas, porque fiz o que julgava que deveria ter sido feito. E se estou pagando por isso, o que acho plenamente justo, não quero que suscite sensações em mim.

Se é que as sentiria.

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 22/05/2009
Código do texto: T1608705
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