O corpo

Dizem que somos estrangeiros quando estamos em uma terra estranha. Se as pessoas nos vêem como uma ameaça, nos chamam de forasteiros. Mas quando não são as pessoas , e sim nós que nos sentimos assim, do que poderemos ser chamados ? De loucos ? Vagantes ? Qual será o nome que nos determina ? E, talvez o que seja o mais triste, somos assim porque nos sentimos assim, não porque o queremos desta maneira. Isto é o que ele pensava quando mais uma vez caminhava entre tantos e , no fundo, estava entre ninguém.

"Os mortos são mais fáceis que os vivos", é o que sua mente lhe desenhava. Havia não muito começado a trabalhar no necrotério. No ínicio não foi realmente uma coisa muito fácil. Aquele cheiro pungente , quase doentio de assepsia, misturado com o odor putrefato de carne era realmente uma coisa escabrosa demais para se relatar. Naquele primeiro dia, mal tentou aparecer, só o fazendo na necessidade premente. "Ajude-me a colocá-lo aqui (o saco que ele sabia que continha um corpo, apesar que o seu cérebro ainda não estava preparando para a visão subsequente)", "Agora o que você vai ver, será o começo do fim, e o mais engraçado, é que o fim, nunca , nunca termina". E ele viu. Ahhh ele viu. No momento que o zipper correu pelo seu fecho, era alguém que estava ali. Ou melhor, fora alguém. Dizemos que quando a alma se vai do corpo, a pessoa não é mais a que ali estava. Que aquilo é apenas uma 'casca' , como o casulo inútil depois da transformação da borboleta. Talvez isto hipoteticamente seja verdade. Mas não empiricamente. O corpo é um delator. O corpo fala quem foi pra quem souber ouví-lo. Ele pode tanto apontar com as marcas que carrega, ou pode lhe contar pela sua aparente mudez. Nem sempre é fácil descobrir seus segredos, nem sempre é fácil conseguir ouví-lo. Mas ele pede. É como se as palavras "Descanse em paz" não pudessem ser verdade, a menos que se ouça seu réquiem. É como o canto dos cisnes que , dizem que quando percebe que irá morrer, se afasta de seus companheiros e canta o mais mavioso canto, para imediatamente desfalecer, só que desta vez, para sempre. O corpo quer fazer isto. Ele quer dar seu canto, seu brado, seu grito ou seu sussurro. Ele precisa dizer quem era. Precisa dizer para alguém. Foi isto que ele viu. Que ele sempre ouviria isto. Que os mortos precisam dos vivos. Que eles clamam por justiça e entendimento. Alguns até pedem amor. Um último gesto de vaidade que ficou mal-completado, como o cabelo em desalinho ou a roupa dessarumada. Alguns, pedem apenas que lhe dêem uma certa dignidade. Mas a maioria clama em apontar quem lhe fez isto. E ali, naquele primeiro corpo, ele viu não a beleza da criação, mas o entendimento. Dentro dele , como um relógio de carrilhão que soa suas batidas surdas em corredores vazios, ele percebe pela primeira vez como deve servir ao mundo. Ele nunca pertenceu aos vivos. Foi um erro de cálculo, um aborto mal-sucedido que lhe permitiu se tornar alguém, ou algo. Sua vida deve ser dedicada aos mortos. Deve chorar a última lágrima que não foi derramada para quem morreu sem ser chorado, deve acolher aqueles que foram abandonados, deve sorrir e apreciar a beleza dos que se arrumavam vaidosamente. Mas acima de tudo, deve ajudá-los a delatar. Descobrir o perpetrador, o criminoso, o insano e doentio que os fizeram ficar assim. Deve ouvir de suas bocas ressecadas, de lábios partidos , ressecados e violáceos, o nome daquele que os fez sofrer. Só assim eles poderão descansar em paz. Só assim, ele mesmo poderá ter paz. Deve dedicar sua vida a ajudar. Mas não aos vivos, pois estes são como sombras que passam e se vão. Os vivos , no fundo, são tristes. Nunca estão contemplando ou satisfeitos com algo, estão ali, sempre procurando o que não entendem. E isto os torna na maioria das vezes , perversos e egoístas. Não é uma parcela muito grande que escapa deste destino. É como o esqueleto dentro-do-armário, ele está lá, sentimos, mas evitamos vê-lo. Só quando estamos realmente sozinhos, ali, aparece, com sua cara descarnada e ele ri, jocosamente de nós. E aí, para mostrar nossa força, agimos conforme ele quer. Alguns de nós se arrepende, dizemos 'Nunca mais faremos isso', mas não importa, porque sempre faremos novamente. É cíclico. Uma vez feito, novamente será feito. E assim seguimos. Mas isto é apenas humano. Não é algo 'certo' ou 'errado'. Ele se lembra do filme que o ator faz um ato heróico e salva uma vida. Todos o congratulam e o chamam de 'herói' , de 'pessoa boa, humana, maravilhosa'. E aí isto o confunde. Um ato 'bom' o torna uma pessoa boa ? E isto o corrói até que ele precisa fazer o inverso. Ele precisa matar alguém. Sem drama, sem envolvimento, sem nada. Apenas o ato. E a isto ele se pergunta , "Isto me torna uma pessoa má ? " . Creio que ele nunca saberá a resposta. Creio que nós, quando vivemos ou quando encaramos o esqueleto de nosso armário, também não saberemos a resposta. Quando se dá conta, já está na frente do prédio em que trabalha. É o momento de viver. É o momento de se sentir vivo. É o momento de viver, para os mortos.

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 03/06/2009
Código do texto: T1629870
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