Pesadelo - 3a. Parte

Mas isto jamais seria conhecido por aquele que fora tão tristemente enterrado, naquele momento ele só conseguia tremer e pensar sobre o que sonhara. Ele lembra quantas vezes rira da cara de suas namoradas quando estas escondiam o rosto em seus braços, quando viam no cinema alguma cena em que aconteciam algum tipo de violência. Ele entende finalmente aquilo que elas sentiram, mas num grau muito maior e de uma maneira muito mais burlesca. Ele lembra que via somente uma porta, uma porta comum, destas que não têm absolutamente nenhum detalhe que nos faça lembrar dela, daquelas que todo dia, quando voltamos para casa, passamos em frente, ou melhor, mais parecida com aquelas portas de apartamento que apesar de serem todas iguais, dividem tantas vidas diferentes. Criando o doce sabor do anonimato, ocultando tanto crimes, amores proibidos,segredos quanto vidas ascéticas e o envelhecimento mudo e mútuo de tantos casais que não mais se amam, vivendo em paralelo, nunca cruzando idéias e sentimentos. Apesar sentido o ranço dos anos se acumulando enquanto consome lentamente as carnes.

Ele se lembra de quando estica sua mão para abri-la , como todos nós faríamos em sonho, pois apesar de totalmente ilógico à nossa racionalidade, o simples fato de uma porta fechada em um sonho caracteriza que há algo atrás. E o que nos move, é apenas um impulso curioso,ou mesmo automático, de ver mais. Independendo completamente do nosso racional que desconfiado, tentaria primeiro entender onde estávamos, o que estávamos fazendo e, porque faríamos aquilo. No fundo, os sonhos (ou pesadelos) são bons e necessários, porque eles não questionam, eles não impedem, não procuram se fazer entender ou sequer ajudar. Eles querem apenas mostrar. Mostrar algo que mesmo que a maioria se apague no momento em que despertamos, ou pelo contrário, se marque perenemente na memória daquele que o têm, o sonho não julga ou tenta criar uma razão de si mesmo, ele apenas o é. Independente de tempo e espaço, misturando pessoas que partilharam de algum momento distante de nossa vida, com pessoas que sequer vimos ou viremos a ver. Ele simplesmente é a concretização do absurdo, bem mais racional que qualquer racionalidade que temos quando conscientes.

A porta se abre sem ruído, mesmo porque ele não lembra se há ou não ruído, apenas que a porta se abre. Dentro, é escuro, mas não tão escuro que ele possa perceber que é um lugar grande, muito grande, grande como um galpão que guardaria toneladas de alimento para distribuição, mas que acabam ficando esquecidas e têm sua mercadoria deteriorada. Vítima de dejetos de ratos e mesmo ataque destes roedores.

Até que seus olhos se habituem à penumbra, ele percebe que há um certo padrão nas paredes, um padrão como de objetos que saíssem dela , de diferentes formatos e tamanhos, percebe que a parede é negra mas extremamente limosa, o que lhe dá de certa forma um brilho peculiar.. Ele percebe então que os objetos que seguem todas as paredes , da ponta mais próxima do chão, até a abóbada, são facas, facas de diversos tamanhos, modelos e materiais. Percebe que elas estão todas fincadas na parede por uma força hercúlea , pois a parede é feita de rocha e , penetram até a metade das lâminas. Esta visão mesmo que pavorosa é inebriante, tal a quantidade de facas, cada qual com seu modelo, cada qual com sua história.

Isto começa a apavorá-lo, pois aquilo não pode ser bom, aquilo prenuncia algo ruim, é muito, muito estranho para ser agradável. Ele levanta seus olhos então e percebe o motivo de sua inquietação. Todo o lugar, que têm o formato de um grande retângulo, na extrema esquerda, no fundo, há algo como se fosse um pilar incrustado na parede, este pilar segue o mesmo padrão, é um retângulo enorme, quase chegando ao teto, mas o que o intrigava é que havia algo encima dele, algo que parecia uma inerte figura, que lentamente se movimentava como estivesse pendurada a algo.

O sonho então, demonstrando seu poder alucinógeno, irreal, irracional, mas por mais disparate que parecesse, para ele real e vívido, ele sente uma sensação de desprendimento, como se ele não fosse feito de matéria e sim de algo etéreo cuja visão, como em flashes, se aproxima da imagem dependurada. Com horror ele nota com nitidez cada vez maior que aquilo é um corpo humano, disforme, extremamente inchado e obeso, um corpo oleoso, brilhante , com uma substância gelatinosa purulenta que o recobre. Seu abdômen imenso parece que de tão dilatado, vai explodir a qualquer minuto. Seus braços hirtos, são tão longos que chegam aos joelhos. Há algo de macilento nesta grotesca figura, como os corpos que apresentam uma decomposição úmida.

Finalmente a imagem se aproxima do rosto daquela figura, e o pesadelo então se torna um espetáculo de horrores sem precedentes. A cabeça disforme, quase duas vezes o tamanho de uma cabeça normal, apresenta poucos cabelos, finos e pegajosos, no pescoço, há uma corda extremamente grossa, que aperta-o fortemente, fazendo que sua boca, contorcida, mostre uma língua grande , inchada e enegrecida. É possível se ver algo viscoso, como uma baba esverdeada, escorrendo desta aberração. Mas o que mais impressiona são os olhos, vítreos, com vasos sanguíneos estourados pela pressão interna do sangue, olhos grandes e arredondados, quase como se ele procurassem um dia ter a ciência de tudo. Neste momento, a mais hedionda das coisas acontece, o que seria impossível para qualquer mente absorver ocorre, os olhos, mortos, se viram lentamente em direção à sua visão, como se ele soubesse que ele o estava olhando. Tão apavorante lhe parece o momento que ele sente se deslocando novamente para dentro de seu corpo....e o grito...o grito irrompe não de sua boca , e sim de sua alma.

Suava ainda, preso daquela grotesca imagem. Quando consegue parar de tremer o suficiente para numa tentativa pôr-se em pé, caminha até o espelho com medo de encarar-se a si mesmo, porque não saberia o que poderia ver. A si mesmo, um rosto medíocre e comum a tantos, ou aquela aberração abortada da Natureza.

Procura no escuro, ver se enxerga o contorno de seu rosto, tenta lentamente ver se é mesmo quem até o momento imagina quem era. Logo a imagem mostra seu conhecido rosto e, balbuciando quase de maneira inaudível, como um mantra sagrado, repete a frase ‘sou eu, sou eu, este, sou eu’, como para fixar em algum recôndito de si mesmo, quem ele era.

(Fim da 3a. Parte)

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 10/06/2009
Código do texto: T1642067
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