Espelho

Vadia. Cachorra. Medíocre, meretriz, ignorante, inescrupulosa, curta de inteligência, sebosa, cactácea, jurássica, cetácea, verme, esponja, ébria, decadente, carente, sem-graça, excessivamente curvilínea, ipecacuanha e qualquer outro adjetivo que possa lhe ofender ou degradar. Mal sabes tu a grande vadia que és! Não merece o chão que pisa nem vale o que caga! Só os espíritos sagrados têm a piedade necessária para suportar a tua nauseabunda presença. E até mesmo estes, certas vezes, cansam-se de tamanha piedade e santidade e vão prezar pela própria sanidade. És inábil, inabitável, inabordável, inacabada, inacessível, inaclimável, inacomodável, inacreditável, inadaptável, inadequada, inaderente, inadestrável, inadimplente, inadmissível, inadotável, inadquirível, inafiançável, inaliável, inamável, inamistosa, inanida, inânime, inapreciável, inarmoniosa, inartificiosa, inastística, inatual, inatural, inaudível, inavegável, inavistável, incapacitada, incaracterística, incasta, incauta, incerta, incestuosa, incidente, incipiente, inclassificável, inço, incoerente, incognoscível, incolor, inconformista, inconfortável, incorpórea, incurável, indiferente, inescusável, infantil, infeccionada, insolvente, insultuosa... Infelizes de nós que somos obrigados a ter a tua pessoa por perto! Ah se pudéssemos apenas virar as costas para ti e mandar-te ao inferno! Ver-me livre deste entulho, desta presença tão indesejada! Que fazer para livrar-me de ti? Morte está fora de questão, não sou assassina... Se bem que sempre tem uma primeira vez... Não, seria livrar-te de um mundo que te odeia e passar o resto de meus dias presa... Não pela polícia dos homens... Lembras-te daquele dia que encontraste teu namorado no quarto da tua irmã? Não, eles não estavam conversando a te esperar! Estavam gozando da tua cara! Aproveitando a tua ausência para fazer tudo que tu negavas-te a fazer com ele alegando tua pouca idade e um namoro curto. Creio que recordas bem o dia que ele largou-te e foi correndo para os braços da tua irmãzinha querida. És uma otária, cega, que nem nota quando as pessoas estão a falar mal de ti na tua frente! Cria vergonha na cara e aprende a tomar uma atitude! Não fiques aí parada esperando que venham salvar-te da desgraça! Ninguém vai te salvar de absolutamente NADA. Nada é o que merecias, pois nunca exististe mesmo. Um fantasma, um espectro, uma ilusão de óptica, uma alma sebosa. Vai-te! Cria coragem ao menos uma vez na vida! Dá um basta nesta situação. Sai de dentro deste quarto e vai ter com o mundo! Ao menos honra a mãe que foi rasgada para te por neste lugar. Grita, puxa os cabelos, rasga almofadas, desarruma a cama, quebra o vaso, mata o gato, mas reage! Dá a tua resposta a estes que fizeram a tua existência mais miserável que a de um peixe semi-morto que vive como pode em meio às águas de um rio poluído. Se tu não o fizeres, nada vai melhorar! E para que temer? Se já não tens nada a perder mesmo. Vai, levanta-te e grita tua independência! À luta! Pega os talheres e espeta a bunda dos famintos, joga uma bola aos aleijados, dá um cd de jazz aos surdos, mostra um álbum de fotografias aos cegos e um filme legendado aos analfabetos. Sê ridícula mas sê alguém.

A mulher soltou um sorriso cadente para si mesma e fechou a porta do armário.

Saiu nas ruas, ainda descrente, mas aliviada, desabafada. Agora sentia que poderia fazer o que nunca fizera na vida. Não que essa sensação fosse durar muito tempo; mas quando ela acabasse, era só abrir a porta do armário e xingar-se novamente.

Thais Gualberto
Enviado por Thais Gualberto em 05/07/2009
Código do texto: T1683039
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