Um conto de dois pontos

No ônibus, sete da manhã, ainda catando nos dentes os restos do café que não saíram com a escovação apressada, pensando no dia infernal que se rascunhava a minha frente, doido para o tempo acelerar até as seis da tarde, põem-se em pé ao meu lado (estava eu sentado ao lado do corredor), tendo mais uns dez lugares vazios no coletivo, o senhor Procópio. Sei o nome da peça pois foi a primeira coisa que o senil, digo, gentil senhor fez ao me dirigir a palavra: apresentar-se.

_ Olá rapazola, meu nome é senhor Procópio.

Juro que fiquei na dúvida se senhor era o primeiro nome do homem.

_ Olá senhor. Disse eu secamente, na esperança de que nosso diálogo ficasse por aí, e eu pudesse continuar em silêncio remoendo minhas infelicidades futuras.

_ Vejo que esta sozinho, não é verdade?

Aí era a deixa para eu me livrar dele.

_ Sozinho? Perdão, não entendi bem a sua colocação.

_ Quero dizer que não há ninguém sentado ao seu lado, não é verdade meu caro mancebo.

Quando ele pronunciou mancebo eu sabia que devia continuar com o plano maquiavélico que se afigurou na minha cabeça na fração de segundos anterior.

_ Queira perdoar senhor, mas creio estar vendo minha noiva bem aqui ao meu lado, pois não? Ou se afirmar que não, quero crer que o senhor esta sendo jocoso!

O senhor Procópio arregalou uns olhos bem grandes, espanou a calça de tergal, e demonstrando firmeza me inqueriu.

_ Vejam só, o menino não respeita os mais velhos, não é mesmo? Estou vendo muito bem, com este olhos que a terra há de comer, que não existe noiva nenhuma, deste ou de outro mundo, ao seu lado! Eis um galhofeiro de primeira meninote.

Juro, quem já estava achando que o senhor era uma aparição era eu, cheguei a piscar os olhos mais de uma vez para ter certeza. Como ele não sumiu, deduzi que vivo ele estava, só que vivia no século XVIII, quiçá com boa vontade no XIX.

_ Veja só meu caro senhor Procópio, que educação meu pai e minha mãe me deram com esmero, porém não posso acreditar que alguém, no alto da sua maturidade, venha a esta hora da manhã provocar constrangimento a mim e a minha doce Alzira, visto que sendo ela de boa família, não esta acostumada a tais situações.

Confesso que por um segundo ou menos, tive pena do pobre senhor, vítima de um eremita de ônibus como eu, o tipo que não suporta puxar papo ou ser puxado ao papo. O senhor Procópio me olhava ora espantado ora irritado, em pé, sobre os olhares dos outros passageiros que acompanhavam interessados o episódio surrealista que se desenrolava.

_ Meu jovem, por um acaso está me achando com cara de bobo? Repreendeu-me severamenta o velhinho.

_ Ora veja o que o senhor fez! Virando-me para a esquerda, como se falando com alguém, dizia. _ Não chore doce Alzira, este pobre homem deve ser um alienado, não lhe queira mal nem se assuste, não deixarei que nada de mal aconteça contigo. Fique calma meu amor.

O senhor Procópio já havia mudado de cor algumas vezes a essa altura, encontrando-se naquele momento num tom lívido com os lábios arroxeados, trêmulo, bastante agitado eu diria.

_ Olhe meu rapaz, não vou continuar a ser alvo de seus chistes maliciosos, até por que chegou meu ponto. Adeus. E desceu enfurecido, a passos largos, do coletivo.

Fiquei ali, num misto de êxtase e culpa (mais êxtase na verdade), remoendo novamente em paz minhas angústias do dia, após ter achincalhado uma pobre alma, que talvez pudesse ter me ensinado algo de valioso. Mas nunca fui politicamente correto na minha vida, e não iria começar naquele dia.

Dali a pouco, logo após a partida do senhor Procópio, a senhora que estava no banco da frente, que até então havia me passado em brancas nuvens, virou para trás e disse:

_ Fica assim não Alzirinha minha filha. Sabe, eu sou idosa, mas tem velho que é abusado, vê gente nova e acha que tem que sentar no lugar deles. Esse aí certamente queria que seu noivo se levantasse. Arrisca até ser um desses velhos tarados e passar a mão em você.

Disse isso e virou-se para frente. Dali a dois pontos chegou a minha vez de descer.

Até hoje não sei se a vovozinha me sacaneou e vingou o senhor Procópio, ou se era doida mesmo.