O julgamento de incógnitas

- A sessão está aberta. A promotoria pode ser apresentar.

Uma mulher morena de cabelos presos em coque se levanta e começa a falar em um tom sério:

- A senhora X admitiu ter matado friamente o seu namorado...

- Não.

A juíza a repreende pela interrupção e a ré se desculpa. A promotora prossegue:

- A senhora nega ter matado o senhor Y?

- Não.

- Mas não foi o que acabou de dizer?

- Eu não neguei tê-lo matado. Mas ele nunca disse ser meu namorado. Sempre me apresentava como uma amiga. E tampouco o fiz friamente, muito pelo contrário, eu estava em chamas.

- Será que poderia explicar para o júri o que quer dizer com “em chamas”?

- Eu estava furiosa com ele.

- E a senhora estava na TPM, então não pôde controlar seus impulsos?

- Ele foi um filho da puta.

A juíza fez outra repreensão.

- Por favor, controle o seu linguajar.

- Perdão, meritíssima. Mas a senhora, como mulher, e até mesmo a promotora, com certeza conhecem tão bem quanto eu os motivos pelos quais me deixei levar pelos meus impulsos, como bem disse.

A promotora se apressou em discordar da ré.

- Não sou eu quem está sendo acusada por assassinato.

- Mas vai me dizer que nunca teve vontade de esganar um namorado mentiroso?

- Ora, não vejo motivos para expor minha intimidade aqui para você.

- Eu só estou tentando lhe mostrar que a minha intimidade não é tão diferente da sua.

- Então me mostre. Quais foram os justificáveis motivos do homicídio?

- Nunca disse que eram justificáveis, promotora. E gostaria que a senhora fosse menos sarcástica. É a minha vida que está em jogo, não me faça sentir incontroláveis impulsos de estrangulá-la.

Essa última frase fez com que todos no local ficassem inquietos e causou problemas para que a juíza conseguisse controlar os ânimos dos presentes.

- Que pessoal sem senso de humor...

- Senhora X, por favor deixe de lado as piadinhas e diga o que tiver a dizer em sua defesa. – falou a juíza em um tom sério.

- Sim senhora.

Só então as faces da promotora começaram a retornar à sua cor original.

- Então... Ele foi muito gentil para me conquistar, mas isso é meio óbvio. No início dava sempre notícias, me informava sobre os detalhes da vida dele, me fazia quer que teríamos um futuro.

- Aí ele fez sexo com você e foi embora? Isso não é uma exclusividade sua, sabia? – interrompeu a promotora, impaciente.

- Nada do que eu vou dizer será inédito, promotora. Aliás, qual é o seu nome?

- Z.

- Z, ótimo. Então, Z, ele não estava comigo por causa do sexo. Eu não sou a Hilda Furacão, mas se fosse por isso eu entenderia e me contentaria em desprezá-lo. Mas ele sempre me tratou muito bem e parecia se preocupar comigo.

- Um motivo plausível para um assassinato.

- Mas será que dá pra você calar essa sua boca venenosa? – gritou X, impaciente.

A juíza começou a bater seu martelo, exigindo ordem. Mas X continuou:

- Não se preocupe, eu sei que vou ser presa! Eu só quero ter a chance de me explicar, será que eu posso? Afinal, foi para isso que convocaram esse julgamento, não é mesmo? Porque se for uma só uma encenação eu paro por aqui e me deixo ser levada para a cadeia.

Todos na sala permaneceram temerosos e silenciosos.

- Obrigada. – e continuou – Eu apenas cansei de ouvir sempre as mesmas desculpas. Eu cansei de me iludir com falsas promessas.

Z se controlava para não interrompê-la.

- Pra que ele dizia que era especial? Era a mim ou a si próprio que queria enganar? Eu juro diante deste tribunal que não vejo o que poderia tê-lo feito mentir para mim. Por que em um dia ele está todo carinhoso comigo e no outro se mostra totalmente blasé? Por mais que eu tenha tentado intensivamente nesses poucos anos da minha vida, nunca consegui entender o que os homens queriam. Talvez os exemplares masculinos do nosso júri possam me explicar. – nenhum jurado ousava abrir a boca – Não se preocupem, eu não vou matá-los, ninguém aqui me iludiu.

A juíza falou em um tom meio maternal:

- Senhora X, nós seres humanos somos volúveis. Um dia acordamos e vemos que o que achávamos que queríamos ontem não é o que queremos hoje. Todos temos os nossos problemas, mas isso não é motivo para sairmos matando uns aos outros.

- Não... às vezes eu acho que eles fazem de propósito.

- Eles?

- Os homens.

- Ora essa, tenho certeza de que há muito homens sensíveis e muitas mulheres insensíveis por aí.

- Mas são justamente esses os piores! Eles te dizem o quanto gostam de crianças, o quanto os seus olhos são bonitos e um dia simplesmente descobrem que procuram algo mais especial. E você, que acreditava ter encontrado o cara com quem seria guardada junto em um vaso de porcelana, de repente perde as asas e cai. Aquelas palavras antes tão doces e melodiosas agora só servem para arranhar o seu coração.

X pára de falar e pode-se ouvir o choro de uma mulher no fundo da sala. A juíza pede a um guarda que a leve para fora, mas ela recusa o auxílio do segurança e se retira sozinha.

- Isso é tudo que eu tenho a dizer em meu favor.

- Mas e quanto à cena do crime? - indagou a promotora.

- Z, vamos fazer um recesso de dez minutos e depois você pergunta isso, ta? – a juíza engole toda a água que estava em sua boca e em seu copo e se retira do recinto.

A promotora fita a ré e esta fita suas mãos. A primeira sumiu, mas o julgamento foi retomado e a segunda se limitou a confirmar ou negar os fatos. Obviamente, foi condenada e passou longos vinte e cinco anos sem ouvir as mentiras ou as verdades ditas pelos homens. Saiu da cadeia envelhecida e amargurada, passando o resto a vida a cuidar de um furão que ganhou assim que teve a liberdade, o último homem da sua vida. Suicidou-se quando este morreu.

Thais Gualberto
Enviado por Thais Gualberto em 10/07/2009
Reeditado em 10/07/2009
Código do texto: T1691683
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