Pesadelo - 4a. Parte

Seus dias transcorrem sem novidade, aquele pavoroso pesadelo não mais faz parte de seus dias, apesar de que ao entrar em algum lugar grande e escuro. Tenta procurar nos cantos se há algo de estranho. Mas isto logo também se desvanece. Nisto nossa mente sempre será interessante. Por mais que algo esteja arraigado em nosso subconsciente, só em alguns momentos estes se farão presentes. Sejam coisas boas ou ruins. Logo o ritmo contínuo de nossa suposta racionalidade suplanta e rejeita qualquer coisa que lhe pareça fora de contexto.

Quisera ele que um novo pesadelo não aparecesse. Mesmo quando o sono lhe custava a vir. Não tinha lembrança nenhuma daquele lugar medonho e da criatura parida de algum círculo do inferno. Mas as coisas nem sempre são como imaginamos. Aliás, porque imaginamos isto ? Sempre queremos o certo, correto, perfeito de nossas concepções. Mas aí nesta concepção humana não é que impera o erro ? Como podemos determinar a perfeição, alegria e o ‘correto’, se somos incapazes de determinar o que são impulsos de sensações, subconsciente e razão ? Se vivemos com a subjetividade, como podemos pensar que tudo têm que ser sob o escrutínio da objetividade ? A mente , sim é nossa, mas acredito que seja mais como um jardim dos fundos de nossas casas suburbanas. O jardim, é nosso, nós cuidamos, arrumamos e aparamos, deixando-o como gostaríamos. Mas há algo que só temos noção, temos até uma vaga idéia, de que existem criaturas que o habitam. Elas, são criaturas do nosso jardim, mas têm vida e pensamentos próprios. São parasitas, parasitas de nossa mente. Quando somos nós, quando são os parasitas ? Poderemos um dia perceber a diferença ? O indivíduo que têm o prazer sádico de ver os despojos de uma vítima humana, será ele mesmo ou o parasita ? Quem será que se apresenta quando o ato em si é julgado como benévolo ou maligno ? O ato não têm distinção em si mesmo, é a ação simplesmente, não há certo, não há errado. Como poderá então ser julgado ? Pela reação determinada pela ação primária ? Mas será consciente quando produzida por nossa mente , habitada pelos parasitas ? Aliás, não seremos nós mesmos os parasitas ? Aquilo que relegamos à escuridão de nossa mente por não acharmos ‘úteis’ ou ‘belos’ ? Como poderemos fazer esta distinção ? Será esta a tênue diferença entre o louco e o são ? Julgar que consegue determinar esta distinção ? Naquele momento, não era nisso que pensava, pensava apenas em dormir e seguir mais um dia de sua patética existência. Finalmente sua mente se perde no grande devaneio que é o sonhar. Primeiro são os momentos de nada, como se fizéssemos parte de um grande limbo cósmico que não nos define, como se nem matéria fôssemos.

Depois, somos carregados de alguma forma à uma cena, na qual um tipo de ação qualquer transcorre. Já não é mais possível se discernir o que é verdadeiro ou não, o que nos faz bem ou não. Ele se encontra em um lugar familiar, apesar que de certa forma desconhecido, ele percebe que é realmente onde ele mora, mas algo está diferente. O que seria a cozinha, têm o formato da sala , o que aparentemente é o quarto, parece mais uma combinação do corredor com o banheiro. Mesmo assim, ele se sente impelido a sair dali, como se ele estivesse de alguma maneira ciente donde seria seu objetivo. Caminha lentamente até a porta, que aberta, desemboca em um obscuro e comprido corredor de um prédio. Não se vislumbra muitas coisas, somente a porta do elevador, cuja luminosidade se faz mais forte, chama sua atenção. Ao entrar no elevador, ele percebe que a porta é um tanto quanto antiquada, daqueles modelos de puxar, totalmente feitas de metal , com interligações que lembravam losangos. Ele puxa a porta , para fechar , mesmo não tendo idéia para que isto. O elevador começa então lentamente a descer, o único ruído é o incessante rangido dos cabos metálicos um tanto quanto envelhecidos, mais um lamento que propriamente o som de metal. Sua velocidade não difere do seu modelo, é com um lento, mas inexorável descer que o elevador se movimenta. O interessante é que entre os andares, o piso que separa estes, ele é maior de qualquer um que ele já tenha visto antes. É tão grande que ocupa três quartos da visão pela porta do elevador, antes de começar outro andar. Isto já era algo que de certa forma o alarmou, porque um prédio não deveria ter uma divisão de andares de certa forma ‘padrão’ ? Ele começa a observar mais atentamente a massa de concreto coesa e percebe que ela parece que respira. Respirar ? Concreto respirar ? Na verdade, pareciam mais ondas que realmente uma respiração, ondas de desnível que faz com que a parede se mexa. Esta foi sua primeira impressão. Até perceber que cada momento que o elevador mais e mais desce em seu eterno caminho, algum tipo de forma começa a se delinear no concreto. Horrorizado, ele percebe que o concreto, têm uma tonalidade estranha, uma cor acinzentada típica de corpos embalsamados. O que ele percebe, talvez tarde demais para o resto de sua sanidade, são corpos, corpos humanos se fundindo e separando, com gritos de dor, tristeza e sofrimento. Mas são gritos mudos. Nenhum só audível escapa do rasgo de suas bocas. Apenas o formato não permite dúvidas que eles sofrem. Mesmo quando em cópula. È uma cópula antinatural. Não é um entrelaçar prazeroso de corpos e sim um rasgar e agonizar, como se para mostrar que o prazer não pode ser possível nessa situação, os corpos engatados uns nos outros, ao mesmo tempo se causam ferimentos não só na sua carne morta, como também em suas agonizantes almas. O elevador desce totalmente alheio à isto, cabeças sendo impulsionadas para trás em ângulos impossíveis, braços e pernas que são esmigalhados sem ruído e, torcidos até ser possível se ver o brilhar da pele prestes a se romper. Seus olhos não conseguem se soltar daquela massa. Diria até que ele se sentia entrelaçado por aqueles corpos clamando por uma salvação que, ele sabia que jamais poderia conceber a eles. Não tanto porque não quisesse, e sim por sua própria incapacidade de ação, visto que ele mesmo era um coadjuvante na ação que era toda controlada pelo elevador.

Não sabe quanto tempo realmente foi (pode existir tantos sofredores assim no mundo , ele se pergunta), até que o elevador pára seu percurso. Não é uma parada brusca, pelo contrário, é como se ele tivesse alcançado um fundo gelatinoso, macio, feito de uma matéria não bruta como o concreto. Ele teme pensar no que seja que o elevador tenha parado. Não há ruído. Ali, por através dos losangos de metal, ele discerne algo oculto pela escuridão, mas percebe que há sombras trêmulas, o que lhe indica que há alguma fonte de luz. Extremamente ínfima , mas mesmo assim, melhor que a escuridão que ele se encontra.

Lentamente ele estica seu braço para que a porta do elevador se afaste e ele possa passar para este andar desconhecido. Se ele tivesse tempo para pensar, talvez aqui a dúvida do que é desconhecido o atravessasse. Apesar de todas as coisas serem as mesmas, quando elas nos são realmente conhecidas ? Podemos afirmar isso da pessoa que vive a existência ao nosso lado ? Podemos conhecer suas manias, suas rugas, seus trejeitos. Mas no fundo, realmente o conhecemos ? Aquele que vemos partir pela manhã para o trabalho, é o mesmo que encontramos ao fim do dia ? Ou se somos nós que partimos para o trabalho, quando retornamos, aquele rosto que estamos acostumados, é da mesma pessoa ? O que se passou ali, através daquela mente ? Nunca saberemos os recônditos dela. Seus sonhos estão encerrados além de nossas pífias tentativas de identificação. Quem é o mesmo todo o tempo ? Nós somos máscaras. Máscaras de alegria, tristeza, alheamento, compaixão, egoísmo, surpresa, ódio, amor, medos , sedução e insensatez. Mas somos máscaras. Máscaras de desconhecidos. A criatura que nos sorri hoje ao jantar com complacência é a mesma que se entregou ao arroubo selvagem do amante desconhecido durante o dia. Ou mesmo nós, o sorriso que damos esconde o prazer perverso que tivemos durante o dia de ver o acidente no qual saímos ilesos, passando próximo e pensando ‘que bom, não foi comigo !’, enquanto o acidentado agoniza mortalmente do ferimento que não deveria existir em sua cabeça. Desconhecidos também os objetos. Afinal, como poderíamos julgar que uma simples garrafa de água-sanitária corrói a garganta de dezenas de crianças todos os anos ? Pensamos, como conforto ‘Mas eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer ! ‘ . É o desconhecido. Tudo nos sempre será desconhecido. Porque somos desconhecidos de nós mesmos. Até o catalisador. Pode ser uma canção, uma imagem, uma palavra. Não importa. É o catalisador. É o momento. O pai levantará e afogará seus filhos com o travesseiro. A mãe não levará o jantar de seu marido e sim sua faca de corte usada somente em ocasiões especiais. Afinal, essa é uma ocasião especial. Única até ! Talvez o catalisador não seja tão destrutivo para todos. Mas ele existe. Ele pode ser o queimar do caderno de anotações de sua irmã, para que ela não seja capaz de conseguir a vaga na Universidade sonhada tantos por seus pais e por ela mesmo. Pode ser o libertar do pássaro de sua gaiola. Pode ser o móvel colocado em lugar não habitual no escuro, para quando o marido chegar ébrio, perceba que algo mais além do horário poderia incomodar sua dileta esposa. Pode ser o bater o carimbo do desempregado na agência de empregos, com um ‘não qualificado’ rubro, quase como um grito na página branca. Mas o catalisador sempre têm conotação vingativa. Nos vingamos, mesmo que de nós mesmos. Porque a navalha sempre vai achar a carne a qual deve ferir.

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 16/07/2009
Código do texto: T1703000
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