Aconteceu num Sábado de Aleluia...

     Era uma noite de sexta-feira de um ano qualquer da década de setenta. Embora a noite fosse continuação de um dia muito especial, o grupo de rapazes sentados na calçada do Bar do Nereu não estava nem aí para os argumentos que um dos integrantes do grupo tentava em vão fazer prevalecer em meio ao “toró de palpites” que norteava a reunião inusitada. Um jovem que o grupo solenemente ignorava, argumentava que a Lua Cheia daquela noite estava deixando tudo muito iluminado. Até parecia que estava de dia! Que uma noite clara daquele jeito era bem capaz de dar “bode” e que...

     O grupo soltou uma enxurrada de “fica quieto” e “cala essa boca” tão rápido que o jovem nem terminou a frase e encolheu-se em um canto mais afastado. Acabrunhado e com os olhos mortiços, ficou observando o desenrolar da reunião.

     Naquela época a palavra ‘adrenalina’ não fazia parte do vocabulário dos jovens, aliás, não só dos jovens. Poucas pessoas a conheciam ou sabiam o seu significado. As palavras em voga, as gírias do momento eram, “barato” e “tesão”.

     Outro jovem, aparentemente, o mais sensato de todos, argumentava:

     “Bicho! Esse negócio não vai dar certo... O camaradinha ali está com a razão. A noite está clara como dia e vocês, só para mostrarem que são machos, querem ir à casa do Delegado. À casa do Delegado, não! Vocês estão ficando malucos? Além do mais, o cara é meu tio!”. - e quase gritando -  “Meeu tio! Entenderam? Se nós formos pegos, vocês vão para a delegacia, os pais de vocês vão lá, tomam um “uisquinho” com o meu tio, contam umas piadas, dizem que o que vocês fizeram é conseqüência da idade, etc... etc... e etc. Resumindo: Todo mundo vai embora para casa, e, no máximo, no máximo, vão levar uns tapinhas nas costas acompanhados do comentário ‘Vocês aprontam cada uma...!’ E eu, bicho? Com que cara eu vou encarar o meu tio? O meu pai? Vocês sabem como é que ele é, todo certinho, todo cheio de não me toques. E mesmo, eu não ando com a barra muito limpa...”

     Alguém com um sorrisinho sarcástico, cobrindo a boca disfarçadamente, murmurou entre dentes:

     “É, nós sabemos! Depois do último porre e do vexame de dormir na casa do cachorro...”

     Um dos rapazes, aparentemente o líder do grupo, pegou o litro de Uísque, serviu uma dose cavalar e a entregou para o “sensato”.

     “Fica frio, bicho! Toma uma dose, acalma os nervos e sossega o facho! Vai dar tudo certo! A gente vai lá, faz o serviço e depois é só festa. Não esquece que as meninas estão esperando a gente lá na chácara, e mesmo, logo, logo, passa da meia-noite e ninguém vai acusar a gente de sacrilégio. Sacou? E tem mais... Outro dia eu ouvi uma conversa do meu pai junto com os amigos dele, inclusive o teu tio... Eles estavam jogando um carteado lá em casa e comentaram que na época deles, eles faziam a mesma coisa que nós estamos tentando fazer hoje. Então... Nós não vamos fazer nada demais, apenas, vamos manter a tradição”.

     Vendo que seria voto vencido, o rapaz “sensato”, timidamente, tentou um último argumento:

     “Pode até ser... Acontece que o meu tio, talvez prevendo alguma coisa, foi hoje lá no sítio dele e trouxe o ‘Sultão’. Vocês sabem do que eu estou falando...??? Cara, aquele cachorro é pirado, doidinho de pedra! Ele morde até a sombra dele... Quer saber? O bicho está lá, solto no quintal... Doidinho para dar uma dentada na perna de um...”

     As reações no grupo foram as mais variadas. Afinal, a reputação do cão não era das mais alvissareiras. Todo mundo conhecia e nutria verdadeiro pavor do tal “Sultão”, um cão da raça Fila. Negro da cor de azeviche, boca enorme, com os cantos eternamente cobertos por uma espuma leitosa; gengivas vermelhas, grandes e pontiagudos dentes amarelos. Diziam até que o demônio tinha uma predileção toda especial por sangue. Gostava de bebê-lo!

     Novamente o líder do grupo interveio na algaravia de opiniões desencontradas provocadas pelo temor quase patológico que o “Sultão” suscitava.

     “Esperem aí, gente! Qual é? Vai todo mundo afinar agora, é?” - irritado jogou para longe o único copo que servia ao grupo. Passou o litro de uísque pela roda para todos beberem diretamente no gargalo. Exigiu que cada um tomasse um gole bem grande e incitou.

     “E o barato? E o tesão de sentir medo, bicho? De sentir o sangue correndo rápido nas veias? É por aí, bicho! Não esquentem a ‘moringa’, tenho tudo esquematizado. Peguei umas dicas com uns caras por aí... Olhem só... Hoje à tarde eu passei lá pela casa do Delegado e, realmente, o “Sultão” está solto no quintal, todo pimpão. Dono do pedaço...! Mas o bom... O bom, é que o desgraçado não solta um latido sequer. Parece até que é mudo. Ameaça, rosna, mostra os dentes, mas não late. Então, meus camaradas, vai dar certinho com o esquema que eu bolei. Sacaram?”

     “Beleza, sabichão! E que esquema genial é esse? Para a gente fazer o serviço a gente tem que pular o muro e entrar no quintal do tio do cara. Vai ser muito fácil... A gente te pega, joga dentro do quintal e, enquanto o “Sultão” bebe o teu sangue, a gente pega as penosas e se manda. É esse o teu esquema?” - ironizou um dos que mais relutavam em participar, da agora, perigosa aventura.

     “Não é nada disso, cabeças de vento! Façam o favor, sentem aqui!” - o líder indicou a calçada do Bar do Nereu - “Prestem atenção, bando de otários! Hoje, de tardezinha, quase noite, eu fui até a casa do delegado e deixei rente ao muro um bambu de mais ou menos uns dois ou três metros de comprimento. Esperem, esperem... Nada de perguntas ou palpites. Tenham paciência que eu vou explicar tim tim por tim tim”. - e aí o líder, ficou em pé, deu uns dois passos para frente, voltou-se para os demais e ficou uns dez minutos explicando o seu plano. Depois ele olhou para o relógio, conferiu as horas e continuou.

     “Faltam quinze minutos para a meia-noite, daqui a pouco a sexta-feira acaba, e aí, da meia-noite e um segundo em diante já é sábado de aleluia, podemos fazer tudo. Vamos embora. Vamos para a casa do Delegado, temos que terminar logo com isso. A gente ainda tem que fazer os bonecos”. - e apontando para o “sensato” - “Não vai mijar pra trás. Hem!”
Na pequena Guajará-Mirim, cidade às margens do Rio Mamoré, entre as décadas de cinqüenta e setenta, era costume entre a juventude da época, festejar o sábado de aleluia malhando bonecos do “Judas”. E, na Sexta-Feira da Paixão, na madrugada que antecedia a manhã do sábado, os jovens juntavam-se para roubar galinhas a fim de sustentar os comes e bebes enquanto confeccionavam os bonecos de Judas que seriam malhados durante o dia do Sábado de Aleluia.

     A rua aos fundos da casa do delegado estava semi-escura. As copas das frondosas mangueiras que durante o dia forneciam refrescante sombra, àquela hora da noite projetavam manchas escuras por sobre o muro e o quintal da casa adormecida. O silêncio da madrugada vez por outra era quebrado pelo leve cacarejar das galinhas empoleiradas nos galhos dos cajueiros, goiabeiras e romãzeiras do pequeno pomar no quintal do Delegado. Sultão ressonava no alpendre da cozinha.

     De repente alguém tocou o ombro do líder e murmurou:

     “E aí, meu camarada! Vai mostrar a tua técnica de pegar galinhas ou vamos esperar amanhecer o dia?”

     “Calma, bicho! Vou te mostrar. Primeiro, a gente segura em uma ponta do bambu e leva a outra ponta até os galhos. - e apontando para o pequeno pomar, o líder continuou orientando - Estais vendo as sombras das galinhas ali nos galhos? Pois é...! Aí, é só gente bater, bem de leve, em um dos pés dela. Então, mesmo dormindo, a tonta apóia o pé na vara, depois a gente bate de leve no outro pé e ela se apóia na vara pensando que ainda está no galho, e aí, é só puxar a vara e quebrar o pescoço da penosa”. - explicou com um sorriso de troça, o líder, apelidado pelo grupo com o epíteto de ‘Barbarrás’ em razão da barba rala que ele teimava em cultivar para o jocoso deleite da turma.

     Como resposta ouviu um resmungo algo irritado: “Então vamos lá, bicho! O tempo está passando...”

     Cuidadosamente, ‘Barbarrás’ movimentou o bambu na tentativa de introduzir a ponta por entre os galhos onde dormiam as galinhas. De súbito, ‘Barbarrás’ sentiu um puxão no bambu que quase o derrubou para dentro do quintal. Apavorado, sentiu respingos da saliva do ‘Sultão’ que cravara os dentes no bambu a poucos centímetros das suas mãos. As pisadas e murmúrios do lado de fora do terreiro despertaram o cão semi-adormecido que sorrateiramente, tal qual um lobo caçando, aproximara-se do muro e ficara postado ali, sentado nas patas traseiras com a cabeça erguida, orelhas tesas, olhos vermelhos e fulgurantes encimando o amarelo dos dentes a amostra, esperando o primeiro incauto a transpor o muro.

     “Cacete! O sacana do cachorro quase arrancou a minha mão! Olha só a meleca da baba do escroto do cachorro”. - Barbarrás apontou a mão para o restante do bando.

“E agora? O que é que a gente faz?”

     “Sei lá, bicho! A gente tinha somente aquele bambu! Alguém se habilita para pular o quintal e pegar as galinhas?” - ironizou Barbarrás olhando em volta.

     “Quem sabe, você que é o sabichão da turma não pula para o quintal e fica entretendo o Sultão enquanto a gente pega as galinhas.” - respondeu um anônimo do grupo.

     “Aqui, pelo jeito, não vai dar samba, não! Vamos ter procurar outra casa para afanar as galinhas”. - alguém palpitou.

     Depois de muito discutirem os prós os contras, chegaram à conclusão de que na casa do delegado estava impossível pegar pelo menos uma pena de galinha. Pelo lado de dentro do muro escutavam a respiração pesada do Sultão e de vez em quanto o estalo seco do bambu sendo mordido.

     Saíram pela madrugada afora procurando quintais onde houvesse pelo menos um pinto para ser afanado. Não podiam chegar para as meninas e dizer que não foram capazes de afanar pelo menos uma galinha. A barra da manhã já se anunciava no horizonte, e o grupo, cansado, sentou no Coreto da pracinha para lamentar a incompetência em roubar galinhas no Sábado de Aleluia. Já imaginavam a gozação que viria das meninas e dos demais grupos que provavelmente teriam tido mais sucesso que eles. Com que caras iriam aparecer no clube do Basa, o Bancrevea, para a tradicional Manhã de Sol à beira da piscina onde a turma se reunia para beber e tirar gosto com as galinhas roubadas durante a madrugada. Ia ser de chorar o tamanho do ‘sarro’ que os caras iriam tirar da cara deles. E as meninas, então? Era demais! Tinha que ter uma solução.

     “Bicho, são quase cinco da manhã. Os padeiros já estão entregando pão... Escutem só, o grito deles... Pegar galinha a essa hora da manhã... Já era, meu! O jeito é ir encontrar as meninas e começar a agüentar o ‘sarro’”. - falou um desanimado Barbarrás. Agora, nem sombra do líder do início da empreitada.

     Alguém em canto mais afastado do Coreto falou:

     “Acho que tenho uma solução!”

     Conseguiu a imediata atenção de todos. Olhos ávidos por ideias, viraram-se para a voz na semi-escuridão do Coreto.

     “Então fala logo!!! Desembucha!”

     “Quanto é que vocês têm no bolso?”

     “Qual foi meu? O que é que tem a ver a nossa grana com a nossa situação?”

     “Simples! Daqui a pouco vai amanhecer e nós estamos aqui, com cara de besta, só porque fomos atrás das idéias malucas de um imbecil.” - o caos se instalou no grupo. Barbarrás quis partir para a briga, mas a turma do ‘deixa disso’ conseguiu apaziguar os ânimos.

     “Vamos, gênio! Porque você não explica para turma a brilhante solução?”  - espicaçou Barbarrás.

     “Simples! Vamos fazer uma ‘vaquinha’. Depois, vamos até a feirinha, que a esta hora já está em plena atividade, e compramos umas cinco ou seis galinhas; passamos na padaria de sempre, falamos com o padeiro nosso ‘chapa’, e então, é só marcarmos a hora para pegarmos as galinhas assadas. Como sempre foi tratado, ele fica com duas e assa o resto para nós. Beleza?”

     “Quer dizer que a gente vai comprar as galinhas que a gente ia roubar somente para honrar a tradição de ‘rouba galinhas no sábado de aleluia’ e decretar de vez a nossa completa incompetência. É isso que eu estou ouvindo?”

     “É isso mesmo! Tem idéia melhor? É isso ou agüentar o ‘sarro’ o resto do ano! Decidam aí!”
- o -

     O céu estava da cor de azul anil. Não existia uma só nesga de nuvem e o Sol brilhava em toda a sua intensidade. O conjunto, “Os Rondonbrasas”, tocava “Black Woman” do mexicano ‘Santana’. Em volta da piscina do Clube Bancrevea as mesas estavam lotadas e ouviam-se risadas. Conversas entrecruzadas misturavam-se ao tchibum de corpos caindo na água. O clube estava lotado e garçons corriam esbaforidos para atender pedidos mil.

     Barbarras e sua turma recebiam vários cumprimentos pela quantidade de galinhas assadas em cima das mesas ocupadas pelo grupo.

     “Caramba! Uma, duas... Sete, oito galinhas? Bicho, vocês conseguiram achar um galinheiro grande, hem? Não me digam que vocês conseguiram pegar as galinhas do Delegado? Bicho, aquelas galinha eram o sonho de todo mundo aqui. Nós passamos por lá mas tinha um grupo parado perto do muro. Cara...!!!! Então eram vocês? Como vocês fizeram para enganar o desgraçado daquele cachorrão? No ano passado teve um da nossa turma que foi mordido por ele. O cara quase perdeu o pé.”

     Com os olhos brilhando de inveja da turma do Barbarrás, o cara que tinha cumprimentado o grupo espalhou a notícia pelo clube entre os grupos de jovens que comentavam entre si as façanhas da noite anterior. De repente, a turma do Barbarrás se transformou na mais popular do clube. Todos vinham até as mesas para cumprimentá-los pelo extraordinário feito.

     As meninas da turma de Barbarrás exultavam com a popularidade dos garotos do grupo. Afinal, elas faziam parte de uma turma vitoriosa. Barbarrás soltava risadas de orelha a orelha.

De súbito, um dos caras do grupo puxou o braço de Barbarrás e cochichou:

     “Meu tio acabou de chegar...! Bicho...??? Ele está vindo para a nossa mesa.”

     “Oi, garotada! Estão se divertindo?”

     “Oi, delegado! O sol está uma beleza. A ‘cerva’ está gelada, e as meninas, cada uma mais jeitosa que a outra. É, delegado, a Manhã de Sol está tinindo! E o conjunto então, nem se fala, os caras só estão tocando música cabeça.”

     Ao redor do grupo do Barbarrás as conversas transformaram-se em sussurros. Alguns até apostavam que o grupo sairia algemado.

     Todos prenderam a respiração quando o delegado colocou a mão no bolso.

     “Ele pegou as algemas”. - foi o pensamento geral.

     Sorrindo, o delegado entregou um pequeno embrulho para Barbarrás e foi sentar-se junto aos outros senhores no salão do clube.

     Os rapazes de todos os grupos de jovens correram até a mesa de Barbarrás para saber o que o delegado foi fazer na mesa da turma.

     “E aí. bicho? O Delegado queria o quê?”

     “Nada, não! O delegado, tio do camaradinha aqui, veio só trazer um presentinho para nós.” - e Barbarrás mostrou para os ansiosos espectadores um paliteiro com vários palitos... Feitos de lascas de bambu.