A MULHER QUE CONTAVA

No começo foi só uma brincadeira de criança. Contar quantos postes havia na rua, quantos carros estavam estacionados, quantas pessoas passariam ali durante meia hora, etc, etc. Brincadeira que se prolongou até a adolescência, mas que ela levou a sério na vida adulta. Continuou contando tudo que tivesse ao seu alcance visual. Namorou vários rapazes e depois do quinto, casou com o sexto pretendente. Foram morar numa bonita casa. Ali teve muito o que contar. Em sua ânsia de sempre contar fez um inventário de tudo. Contou quantos azulejos cobriam as paredes da cozinha, quantos ladrilhos havia na copa e na cozinha. Contava tudo nos banheiros e na lavanderia, com quantas pedra de ardósia revestiram o quintal, quantas peças de roupa eram postas diariamente nos varais, quantas vezes seu cachorro latia por dia, quantas vezes o telefone tocava e até quantas vezes tocavam a campainha. O caso tomou-se uma mania. Quando ia para cozinha preparar o almoço, chegou a contar os grãos de feijão que ia cozinhar e quantos bifes iria temperar. Abria os pacotes de biscoito e contava quantas unidades havia em cada um e os acondicionava novamente.

Os filhos foram nascendo, a família aumentando e ela sempre contando. Contava quantas noites de amor tivera em seu casamento, quantas brigas, quantas reconciliações, quantas ofensas, quantos perdões, naqueles vinte e cinco anos de casada. Dez filhos, contados um a um, nos anos, meses, semanas, dias e horas do nascimento de todos , contava quanto centímetros cada um crescia por ano até que ficassem adultos.

Depois de trinta anos, três meses, dezoito dias e duas horas de casamento o esposo falecera e ela passou a contar as horas, os dias, os meses e os anos sem sua companhia.

Os filhos foram casando, vieram os netos que igualmente eram contados em todos os detalhes de tempo.

Já velha ia à sala de jantar e ficava diante daquela enorme mesa onde durante anos a fio colocara para cada refeição: doze pratos, doze talheres, doze guardanapos, doze copos. Estava agora sozinha, naquela imensa sala, outrora pequena, sentada à cabeceira daquela mesa onde havia somente um prato, um talher, um guardanapo, um copo, um bife e um ovo cozido. Terminou a ceia, contou os anos que já vivera, os meses, as semanas, os dias, e as horas. Agora só lhe faltava contar as estrelas. Foi ao terraço, sentou-se na cadeira de balanço e pôs-se a contar as estrelas no céu límpido de verão. Contou incansavelmente milhares e milhares, até que uma estrela cadente cruzou o espaço e o céu escureceu. Dizem que em seus olhos ficara apenas o brilho de uma única estrela.

Lucilia Cavalcanti
Enviado por Lucilia Cavalcanti em 26/08/2009
Reeditado em 29/09/2009
Código do texto: T1775965
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