DALILA E O GIGANTE = EC

“...Gigante pela própria natureza, és grande, és forte, impávido, colosso...”

Acordou atrasada e se aprontou às pressas para ir trabalhar. Odiava fazer o turno da manhã, não gostava do que fazia, mas tinha que fazer por uma questão de sobrevivência.

Mais uma vez lembrou-se de que quisera fazer a Faculdade de Belas Artes, mas a mãe achava que arte não era profissão, que era melhor fazer contabilidade e agora, por culpa dela, estava presa num escritório fazendo um serviço que detestava.

Quando os pais morreram ela passou a morar com a irmã casada enquanto esperava pelo casamento que nunca se realizou.

Ela se dava muito bem com a irmã e o cunhado, mas sonhava com um cantinho só seu.

O namoro (noivado?) já se arrastava por doze anos. Estava desgastado e ela nem tinha mais certeza se queria mesmo se casar com o Manuel e, pelo jeito, ele também não.

Que droga!

Tudo na sua vida era terrivelmente monótono, rotineiro, sem graça.

Àquela manhã, mais do que nunca, estava terrivelmente mal humorada. Tinha certeza de que o dia ia ser bravo, mas, não tinha outra alternativa senão sair e encaminhar-se ao seu trabalho.

Quando voltava para casa, foi alcançada na rua por uma inesperada tempestade de verão.

A chuva caiu de repente, forte, acompanhada de rajadas de vento o que lhe dificultava os passos e, então, ela percebeu que alguém a cobria com um guarda-chuva.

Voltou-se e, assustada, viu ao seu lado, muito próximo, um homem enorme, um gigante.

Nossa! Um gigante! Nunca tinha visto um. Achava até que eles não existiam, que eram figuras lendárias de contos infantis.

Instintivamente tentou afastar-se, mas, ele, naturalmente, acostumado com as reações desse tipo, sorriu e disse:

- Deixe-me ajudá-la. Eu sou grande, mas sou manso.

Sua voz tinha algo de confortante que fez com que Dalila se tranqüilizasse e continuasse caminhando ao seu lado, embaixo de seu guarda-chuva.

Mas a tormenta aumentava e era, cada vez mais difícil andar contra a enxurrada. Em breve a rua estaria alagada e Dalila começou a apavorar-se.

As casas comerciais fecharam as portas temendo a invasão dos transeuntes molhados.

Que fazer?

De repente, havia um homem à porta semi-aberta de um bar, olhando a rua e o gigante abordou-o:

- Podemos entrar?

Surpreendentemente, o homem afastou-se deixando -os passar e fechando a porta às suas costas.

Só então Dalila pode ver bem o seu acompanhante.

Ele parecia muito jovem, quase um menino. Tinha cabelos alourados, olhos bonitos e um largo sorriso.

Podia ser um belo rapaz. Que judiação!

Mas ele não lhe deu muito tempo para reflexões. Começou logo a tagarelar:

- Meu nome é Yvan, mas não sou "o terrível", muito pelo contrário, sou um fracote que mal agüenta com seu próprio peso, tenho 22 anos, solteiro e...

Com um gesto largo mostrou seu corpo disforme.

Ela não pode deixar de sorrir:

- Eu me chamo Dalila...35 anos ...solteira ...

- Muito prazer, Dalila!

Eu estou muito feliz, hoje, pois acabo de saber que fui aprovado no vestibular de medicina.

- Parabéns! Quer dizer que daqui a seis anos teremos mais um profissional da saúde?

Ele dá uma gargalhada:

- Provavelmente, nem entrarei na Faculdade. Há quinze meses atrás, o médico me deu um ano de perspectiva de vida. Já extrapolei, mas sei que não vou muito além.

- Você me parece muito saudável. Vai viver muito ainda!

- Sei que não será assim. Os gigantes vivem muito pouco. A doença (você sabe que é uma doença?) é degenerativa e acaba com a gente em pouco tempo.

Mas, deixa isso pra lá. Vamos viver as alegrias de hoje e esquecer o futuro sombrio.

Deixe-me contar-lhe da minha última namorada:

Nós nos conhecemos em uma sala de bate papo, depois começamos a nos corresponder e a falar pelo telefone.

Eu temia que ela sugerisse um encontro ao vivo, pedisse uma foto ou coisa assim, mas ela manteve-se no anonimato por muito tempo até que um dia disse que tinha uma triste revelação a me fazer, pois achava que o namoro estava evoluindo muito e ela sentia-se na obrigação de revelar-me que nunca poderíamos ser namorados de verdade porque ela era... uma anã!

Ri:

- Imagine você, uma anã e eu!

Passado o primeiro impacto, eu pensei:

Por que não? Fazíamos, ambos, parte de uma minoria. Tínhamos problemas que nos impediam de sermos aceitos pelas pessoas ditas normais, mas podíamos amar dentro de nossas limitações com um amor espiritual, pois nossas almas não são gigantes nem anãs e o seu potencial de afetividade é imenso.

Tudo isto eu disse a ela, mas ela não me entendeu. Acho que pensou que eu estava mentindo, tripudiando em cima de sua deficiência e pôs um ponto final no nosso romance.

Foi uma pena, mas, que fazer?

Voltei às salas de bate papo, mas dificilmente encontrarei outra anã, ou o que seria melhor, uma giganta!

Dalila riu divertida, já completamente descontraída.

Podia ser até que ele estivesse mentindo, mas, de qualquer forma estava se revelando uma pessoa sensacional, capaz de estudar com afinco, preparar-se para um vestibular difícil e alegrar-se com a vitória, mesmo sabendo que de nada ia valer-lhe. Contar com bom humor uma frustrante experiência sentimental e, mais do que tudo, aguardar a morte com tanta tranqüilidade. Não se lembrava de haver conhecido, jamais, alguém tão interessante.

Mas ele estava falando de novo:

- Agora é sua vez. Fale-me de você.

Dalila sempre fora discreta, pouco inclinada a fazer confidências, mas, naquele momento, sentiu que precisava abrir-se. Falar tudo. Colocar em palavras toda sua frustração diante da vida, e começou:

- Queria muito ter minha própria casa, mas...

- Queria estudar Belas Artes, mas...

- Odeio meu trabalho, mas...

- Namoro há doze anos...

Neste ponto, ele a interrompeu:

.

- Doze anos? E por que não se casaram ainda?

.

..- Boa pergunta! Por que? Acho que nenhum de nós quer se casar...A paixão já se foi há muito tempo, mas a gente não acha jeito de terminar...Já tornou-se um hábito que se cristalizou...

- Que absurdo! Mande esse cara passear! Arranje um amor novo, alguém que a faça feliz. Ou até fique sozinha que é melhor do que mal acompanhada.

Não entendo, também, por que não estuda o que quer, não arranja um lugar para morar, não muda de emprego...

Desculpe a franqueza, mas não sei por que as pessoas se acomodam.

Nem em um berço de plumas valeria a pena, muito menos em uma esteira de espinhos

O dono do bar abriu as portas e alguns fregueses começaram a entrar.

Lá fora, a cidade estava mais limpa e mais alegre depois da borrasca.

Um belo arco-íris enfeitava o céu e o sol vinha surgindo de mansinho como um tímido sorriso sobre a tarde.

No dia seguinte, logo de manhã, Dalila tinha novidades para a irmã e o cunhado espantados:

- Vou procurar um apartamento para eu morar...

- Por que isso? Desgostou-se com alguma coisa? Pergunta o cunhado, todo preocupado.

- Absolutamente! Eu amo vocês todos, mas sempre quis ter o meu cantinho, vocês sabem.

- Você podia ficar aqui até o casamento, sugere a irmã.

- Acontece que não vai haver casamento. Vou terminar esse caso com o Manuel, hoje mesmo.

- ?!

- E tem mais. Vou entrar na Escola de Belas Artes e vou começar a procurar outro emprego.

- Nossa, exclama o cunhado, acho que a chuva amoleceu-lhe os miolos!

- Quase acertou. Na hora da chuva eu encontrei um gigante...

- Um gigante?! Eu acho que a chuva amoleceu-lhe mesmo os miolos! Coitada!

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - O Hino Nacional em Outras Esferas.

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Maith
Enviado por Maith em 04/09/2009
Reeditado em 04/09/2009
Código do texto: T1791857