Dias nublados

Ele era só um rapaz comum. Não tão comum, já que o pai contava com algumas posses que proporcionavam algum luxo. Um grande sedan preto do ano, correntes de ouro, dinheiro, amigos e mulheres caça-níqueis.

A vida estava uma beleza, vinte e poucos anos de idade. Durante o dia ajudava o pai nos negócios da família, executava serviços bancários, fazia cobranças, entregava mercadorias e; à noite, cerveja gelada, peixe frito e putaria.

Não lia um livro, nem gostava de assistir filmes ou futebol, apenas curtia uma balada bate-estaca ou um serta"nojo".

Um dia, experimentou a primeira carreira de cocaína. Foi amor à primeira vista.

Sentiu-se mais esperto, mais forte, mais disposto. Ao falar com uma garota, teve uma incrível desenvoltura, não gaguejou, não titubeou, não vacilou, apenas falou tudo o que ela queria escutar.

Sob o efeito da substância, a cerveja não conseguia entorpecê-lo, então passou para o destilado, uísque nacional mediano, com gelo, várias doses.

"Não é tão ruim quanto dizem"..., pensou.

Começava na quinta, parava no domingo à noite. O dinheiro começou a faltar. Se cheirava, não tinha para a bebida e o carrão sempre com o marcador "na reserva".

Primeiro, desceu do uísque para o conhaque, com gelo, já que era parecido, enganava.

As correntes de ouro trocaram de pescoço, já que traficantes também adoram adornos dourados.

Certo dia, depois de dirigir pelas vielas escuras, chegou na boca e o produto estava em falta.

Ofereceram um substituto: o crack, a famosa pedra, o beijo do demônio.

Não sabia usar, nunca havia fumado nem cigarro, mas foi rapidamente auxiliado (para isso sempre se acha ajuda): um cachimbo feito com tubo de caneta, copinho de yakult e papel alumínio. Uma isqueirada e uma tragada, na segunda já sentiu o "baque".

Superpoderes, imaginou. Naquele dia foram seis pedras, uma atrás da outra.

O tempo passou, várias outras vieram, de segunda a segunda. Pronto, a pedra havia achado sua morada predileta.

Furtar coisas em casa havia se tornado prática normal, já que havia empenhado o celular e até o Rg. Tapa na cara do pai, xingando a mãe. "Eu quero meu dinheiro !!!", sim, passou a querer o que não ajudava a ganhar.

Banho não era mais necessário, nem comida...mas pedra sim. Cada pedra era um tesouro. Comprava, fumava e ficava procurando no chão, achando que ao invés de já ter fumado, tivesse perdido. Paranóia.

Um regime eficaz, de oitenta para sessenta quilos em poucos meses, sem exercício, apenas noites em claro, escondido em um muquifo qualquer, fumando pedra e procurando mais no chão. Os amigos tomaram distância, a solidão bateu. As ameaças de morte começaram, traficantes batiam na porta da casa do pai, exigindo o pagamento pelas dívidas contraídas na madrugada.

Pediu por internação. A primeira, de seis meses desintoxicou, proveu ganho de peso, em pleno carnaval: saída e recaída relâmpago. O pai já havia deixado um carro no tratamento, esperançoso de que o filho abandonasse o vício.

Igrejas, cirurgias espirituais, correntes de oração, promessas de pai, mãe e irmãos. Algo tem que funcionar.

Deus ajude essa família.

BORGHA
Enviado por BORGHA em 05/11/2009
Reeditado em 06/11/2009
Código do texto: T1906050
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