Dialética Nacional

_Vamos! Acorde meu senhor! – disse-me o fiscal do vagão, um homem de meia idade, muito bem arrumado e com uma expressão bem nervosa, ao chegarmos na estação.

Aliás, que estação! Era a primeira vez que eu viajara para a capital. Depois de dois dias de viagem de trem, cheguei à famosa cidade. Assim que desembarquei, vi o quão grande era a tal estação: era enorme, faraônica! Pilares grandes, cilíndricos, sujos devido à poeira vinda das ruas, tão bonitos quantos os arcos, também grandes, localizados na entrada, com vitrais coloridos que permitem uma boa iluminação para o local e que se encostam ao teto, de uma altura assustadora. As paredes, recém pintadas, por outro lado, são difíceis de serem vistas, já que são camufladas pelas bancas de frutas, legumes e verduras, pelas de doces e pelo pequeno guichê, desproporcional ao movimento da estação, que vive lotado de pessoas, que compram passagens, retiram suas encomendas ou que apenas estão lá a reclamar. Ao lado do guichê, estendendo-se por toda a lateral de fora da estação, encontram-se várias lojinhas, com cores pouco vivas, de tecidos, de artigos para o lar, de materiais de construção; tinha até um sapateiro, um senhor, já com as marcas da idade na face, que delicadamente lustrava um par de sapatos pretos sobre uma bancada, muito limpa, assim como toda a sapataria. Ainda pude ver um menino, muito novo, que, aos berros, vendia jornais entre as bancas e lojinhas. Depois de uma olhada mais detalhada, notei um relógio, preso a uma das paredes, que me lembrou que eu ainda não havia comido nada desde manhã. Como meu primo, que mora aqui há anos, ainda demoraria a vir me buscar, passei a caminhar, em busca de um lugar onde pudesse comer algo.

Encontrei uma cantina, quase na porta da estação. Era de uma senhora italiana, já viúva, que viera para o Brasil à procura de uma vida melhor e montara, há poucos anos, essa cantina, bem alegre e movimentada, onde pude saborear uma bela macarronada italiana e um bom vinho. Durante esse tempo que permaneci na cantina, pude perceber todo o real movimento da estação: trens chegando e partindo, pessoas entrando e saindo dos vagões, muitas malas a ir e vir, casais se encontrando, se despedindo, filhos que voltam para o interior, estrangeiros que chegam a buscar uma vida nova e outros que vinham expulsos do campo, após a crise do café. Muitas dessas pessoas chegavam trazidas pelos bondes da cidade, de madeira e puxados por burros, algumas poucas vinham de carro e outras a pé. Vi também muitas carroças a passarem rapidamente, carregadas ou não, disputando espaço com os bondes e os pedestres. Um intenso movimento de veículos e pessoas.

No meio de todo esse movimento, do barulho dos trens e das vozes, um velho homem, claro e calvo, lia seu jornal sentado em uma banqueta de madeira rústica, em frente a uma mercearia. Parecia-me alienado a todo o que ocorria à sua volta, não demonstrando qualquer sensação, nem de alegria, tristeza ou irritação. Era quase imperceptível e se mantinha ofuscado pelas pessoas que entravam e saiam da mercearia, que, mais tarde soube, pertencia a um imigrante português, que, como muitos, veio para o Brasil tentar “ganhar a vida”. Uma mercearia pequena, escura, que vendia de tudo e vivia cheia de pessoas, ou que vinham da estação, ou homens que trabalhavam na construção do novo cortiço do bairro, que abrigará pouco mais de 15 cômodos. As obras iam em ritmo muito acelerado e já estavam quase finalizadas. Estavam a construir quartos pequenos, quase sem ventilação, onde provavelmente viverão de 5 a 8 pessoas da mesma família. Várias tinas, onde as lavadeiras trabalhariam, e um único banheiro para todo esse povo. Parece-me quase impossível que alguém consiga viver naquelas condições, mas, segundo o comentário que soa da mercearia, há muita procura pelas “casinhas”. No resto da rua, restavam apenas casas, não muito grandes, de arquitetura ainda imperial e com cores claras. Passei a andar pela rua e, antes que me desse conta, já estava perdido no meio de um alvoroço de pessoas e barracas e carroças e bondes, todos com seus sons estridentes e altos. Desnorteado, encostei-me sobre uma parede, aparentemente nova e de uma casa muito grande, tentando entender um pouco aquilo tudo que estava se passando. Pude perceber que havia uma miscelânea de várias pessoas: brancos, negros, mulatos, amarelos, altos, baixos, gordos, magros, jovens, velhos; todos indo ou voltando para algum lugar. Mais adiante, pude perceber o motivo da agitação: era a primeira indústria que abrira na capital, uma fábrica de tecidos, que estava contratando trabalhadores para poder, enfim, entrar em funcionamento. A jornada era longa: mais de quinze horas por dia trabalhando em um apertado e abafado local, mas, devido às necessidades, ninguém reclamava. Na fila, camuflados pelos adultos, pude perceber que havia até crianças, que lá estavam para complementar a pequena renda de seus pais. Soube também, mais tarde, que aquelas pessoas que iriam trabalhar na fábrica eram praticamente as mesmas que iriam ocupar os pequenos quartos do cortiço.

Após todas essas descobertas, voltei para perto da estação, onde esperaria por meu primo. Pude perceber, pela primeira vez, um odor fétido, vindo do cortiço. “Na verdade” – explicou-me o mestre de obras da construção, um homem forte, queimado do sol, aparentemente vindo do Nordeste, com quem pude conversar por alguns minutos – “Esse cheiro vem do outro cortiço, que fica atrás desse, perto do riacho. Eles não têm esgoto e tudo é jogado no rio”. Por um instante, após essa conversa, observei a multidão de pessoas em frente à fábrica, todas nitidamente abatidas, fracas e já aparentando uma idade mais avançada do que realmente possuíam, enquanto as crianças se mostravam assustadas e impressionadas com o barulho que partia de dentro dos enormes portões de ferro da fábrica. Além de terem de trabalhar naquele local horrível, e assustador, irão morar naquelas casas pequeníssimas, tomadas por um forte odor constante, que já estava a me fazer mal.

Nesse curto espaço de tempo, meu primo, mais alto e magro, exibindo uma grande barba, chegou, abraçou-me, perguntou do resto da minha família, questionou-me por notícias novas; estava tão curioso e eufórico ao me ver quanto eu estava ao chegar naquele local desconhecido. Perguntei-lhe sobre a fábrica, sobre as pessoas, sobre tudo aquilo que estava se passando na rua, e ele respondeu-me:

_ É a modernização chegando ao nosso país. Isso vai nos trazer muitos benefícios! Quanto àquela gente, àquelas casas e a esse odor horrível, bem, posso lhe dizer que é um mero detalhe da nossa moderna industrialização! Mas, deixemos de conversa e vamos embora, as pessoas de casa estão com saudades de você!

Fomos embora, deixando para trás toda aquela modernização.

brunão
Enviado por brunão em 20/07/2006
Código do texto: T198256