Vida de Gado

Estava, desde muito nova e ingênua, a observar a rua de chão batido, seco e rachado, defronte sua casa. Toda manhã, após se levantar, preparar um café forte para seu velho pai, um homem já com as marcas da vida e do sofrimento em seu rosto, ia lavar a pouca muda de roupa que se acumulara do dia anterior, habilidade que aprendeu com as senhoras do povoado, já que sua mãe morrera, vítima de desidratação, quando ela era ainda um bebê. Após lavar, torcer e estender as roupas de algodão, tão ásperas quanto suas pequenas mãos, ela se dedicava à limpeza da simples e pequena casa, com dois quartos pequenos, uma sala com poucos móveis, cujo único objeto de maior destaque era a antiga foto de seu pai com sua mãe no dia de em que se casaram. Partindo da sala, já se via a cozinha, com um antiquado fogão à lenha que possuía ao seu lado um monte de gravetos, que todos os dias seu pai trazia ao entardecer, quando voltava para casa. Seguindo a cozinha, estava o quintal, também de chão batido, onde se encontravam um tanque e um velho varal. A água vinha de um poço artesiano, diferentemente da época de sua avó e sua mãe, quando deviam andar pelo menos cinco quilômetros até o riacho mais próximo. Após a rápida faxina, que se resumia em varrer a poeira que teimava em entrar com o vento, mesmo após seu pai ter colocado as duas portas na casa, a pequena jovem iniciava o preparo do almoço, uma comida muito simples e até rápida de se preparar: cozinhava o feijão, refogava o arroz e, a tudo isso, somava-se a farofa, muita farofa, comprada na única venda do povoado. Tudo pronto, arrumava o almoço em uma pequena tigela, amarrava delicadamente com um lenço vermelho e saía em caminhada. Depois de percorrer pouco menos de dois quilômetros, chegava até a plantação de mandioca onde seu pai trabalhava das sete da manhã até o anoitecer. Deixava o almoço e voltava calmamente pelo deserto caminho.

Sem pressa, podia observar todo o movimento daquele lugar: via outras mulheres levando almoço para seus maridos na lavoura, via crianças a correr e brincar por entre a vegetação da caatinga e, mais perto da vila, observava todo o movimento da única venda da cidade, onde se podia encontrar quase de tudo e onde as pessoas se reuniam à noite para prosear e esquecer momentaneamente todo o sofrimento daquele local. Logo adiante, era possível ouvir a professora lecionando na única escola da cidade, feita de pau-a-pique e barro, onde se misturavam alunos de várias idades, uns mais sábios com outros menos. Sentia enorme vontade de estudar, poder ler e escrever, conseguir ler a bíblia, pois era muito religiosa, devota de Padre Cícero. Só não estudava porque seu pai a pediu para que tomasse conta da casa e fizesse todo o serviço doméstico. Seu irmão mais velho havia freqüentado aquela escola e, assim que juntou algum dinheiro, fruto também do serviço no campo, viajou para São Paulo, a fim de melhorar de vida. Todo mês ele mandava uma carta pra eles, que, assim que a recebiam, corriam até a casa da professora, para que esta a lesse. Geralmente não trazia más notícias: ele havia conseguido um emprego na construção civil e conseguia se sustentar. Além deles, a professora assistia muitas outras famílias que não eram alfabetizadas e que necessitavam se comunicar com parentes, amigos, filhos, ou maridos que se arriscavam indo para o Sudeste.

Voltando a si, continuou a caminhar, até chegar à casa da mulher mais idosa do povoado, que, além de benzedeira, era também parteira e viu nascer praticamente todos os habitantes daquela cidadezinha, já que não existia hospital naquele lugar e o mais próximo situava-se a uns vinte quilômetros por estrada de terra no lombo de um burro ou, para os mais afortunados, em uma carroça com cavalos. Também não havia prefeitura, delegacia, corpo de bombeiros. Somente um posto de saúde, com um enfermeiro de plantão todos os dias, é que fornecia alguns remédios básicos à saúde do povo, como vermicida, analgésicos, e também lá podia se encontrar, de quatro em quatro anos, alguns complementos vitamínicos e leite em pó.

Assim que chegava à sua casa, lavava toda a louça, muito riscada e amassada, e botava ao sol para secar. Terminado isso, passado um pouco do início da tarde, ia recostar-se sobre a janela azul turquesa desbotada, que ficava bem na sala de sua casa, e que abrigava uma cortina também de algodão sobre as paredes amareladas pela ação do tempo. Desse modo, passava toda a tarde, observando, assim como muitas outras senhoras, mães e jovens, a vida correr sem pressa pelo lugar. Olhavam as poucas crianças passarem correndo e viam quem entrava e saía da venda. Quase não se ouvia conversa entre essas mulheres, apenas o essencial: comentários sobre os afazeres domésticos, sobre a vida, sobre o preço dos produtos da venda e, principalmente, as lamentações das mulheres que perderam seus maridos para a seca e que há anos não os viam. Esgotados os velhos e monótonos assuntos, passavam apenas a olhar e, algumas vezes, a ver. Ela, em especial, reparava a imensidão do céu azul, desanuviado, que todos os dias abençoava a vida dos sertanejos. Olhando para o céu, apenas olhando e nada mais, nem reparava o anoitecer, apenas se dava conta de que já escurecera quando reparava o brilho das estrelas. Como brilhavam! Com a chegada das estrelas, os homens trabalhadores retornavam às suas casas e as crianças eram postas para dormir. Seu pai chegava, lhe dava um singelo beijo na testa, e caminhava para o seu quarto, onde descansava, para poder recomeçar tudo no outro dia. A moça, já cansada de seu agitado dia, repousava-se sobre sua cama simples, onde, antes de dormir, ainda olhava pela última vez as estrelas através de outra janela, a do seu quarto. Dormia um sono tranqüilo, leve, mas sem sonhos. Não podia sonhar, não sabia sonhar. Todo aquele céu azul e aquelas estrelas tão brilhantes não eram o suficiente para que ela pudesse sonhar.

Desde que nascera, nunca viajara, só vivera dentro das limitações físicas e mentais daquele povoado isolado do resto da civilização, onde não havia televisão nem jornal e aonde as notícias chegavam por meio de outros burros, que também traziam, uma vez por semana, a pouca correspondência que abastecia as esperanças e os assuntos daquela gente. Sim, possuíam esperanças! Esperanças de não faltarem alimentos; esperanças de uma seca menos avassaladora; esperanças de sobreviverem. Não sabiam como poderiam mudar aquilo, mas acreditavam cegamente que Deus os ajudaria.

Ela, assim como todas as outras moças, tinha a idéia de um dia se casar e pensava que com isso sua vida mudaria. Um dia, novamente encostada na janela da sala de sua casa, ela o viu passar e ocorreu uma troca de olhares entre eles. Foi paixão à primeira vista! Pouco depois, já estavam conversando, perto de outras pessoas, na pequena venda. Após alguns anos de namoro e de planejamentos, casaram-se! E a vida dela realmente mudou: agora, levantava bem cedo para preparar café para seu pai e seu marido, indo, depois, lavar a nova muda de roupas que se acumulara do dia anterior. Lavadas e esticadas as roupas no varal, partia para a limpeza de sua pequenina casa, agora com novos móveis velhos, trazidos por seu novo homem. Sucessivamente à faxina, preparava o almoço: feijão cozido, arroz refogado, muita farofa e, além disso, muita pimenta, também comprada na venda. Terminado, ajeitava tudo em duas pequenas tigelas, amarrava delicadamente com dois lenços vermelhos e partia em caminhada: andava pouco menos de dois quilômetros, onde deixava a comida para seu pai e depois percorria pouco mais de um quilômetro até chegar ao local onde seu homem trabalhava: um limitado barracão onde se preparava a farinha de mandioca, que seria vendida para outros vilarejos limítrofes e também para a única venda desta cidade.

Sem pressa, após ter deixado as marmitas, voltava para a casa. No caminho, observava as mesmas crianças, não mais tão novas, a brincar e correr por entre a vegetação da caatinga. Logo adiante, espiava ligeiramente o movimento da venda, cujos fiéis clientes entravam e saíam calmamente. Ao passar pela venda, chegava à mesma escola que um dia sonhara em estudar e que agora a tinha apenas como um futuro melhor para seus possíveis filhos. A escola não mudara: a professora e os alunos eram os mesmos, ninguém entrou e, por sorte, ninguém saiu. Mais alguns metros de caminhada e chegava à casa da mulher mais idosa do povoado, que agora possuía mais responsabilidades: o único posto de saúde da vila fechou, após o enfermeiro ter se mudado para outra cidade, e não era mais possível obter remédios na vila, a não ser pelas ervas e chás que a benzedeira preparava.

Enfim, chegava à sua pequena casa, onde, após lavar a mesma louça amassada e riscada, ia recostar-se sobre a janela azul turquesa desbotada, na sala, a qual permanecia sob a companhia da cortina branca de algodão e das paredes amareladas devido à ação do tempo. Trocava algumas palavras com as outras mulheres do povoado, que não sabiam falar de outras coisas se não dos altos preços da venda, dos afazeres domésticos, da vida e sempre terminavam melancolicamente a conversa ao falar dos seus homens, vencidos pela seca e pela ilusão. Em poucos minutos, ela já estava observando o céu azul, toda a sua beleza e sua limitação. Sim, pela primeira vez percebera que o céu, embora lindo, não podia ser imenso, muito menos abençoado, pois nunca trouxe nada de bom àquela gente. Olhando, apenas olhando, não mais se deixava hipnotizar pelo azul celeste e permanecia imaginando o que haveria além das estreitas limitações de seu povoado. Porém, ao imaginar um outro mundo, conformava-se com o seu, com sua miséria, com sua simplicidade e com toda a sua ignorância. Nesse dia, ela pode perceber o anoitecer, com toda a sua frieza e solidão. Também percebeu que havia se passado muito tempo desde que se casou e que em sua vida, depois de tantas mudanças, nada havia mudado. Não notou o brilho das estrelas, que estavam foscas, sem vida. Simultaneamente com a vinda da noite, as crianças eram postas para dormir e os homens retornavam às suas casas. Seu pai foi o primeiro a chegar, deu-lhe o mesmo singelo beijo na testa e foi dormir. Pouco depois, chegou seu marido, muito cansado, que carinhosamente a beijou e também foi dormir, pois amanhã começará tudo de novo. Ela permaneceu na janela, vendo as mesmas estrelas de antes.

Essa mulher nascera e vivera no mesmo povoado, castigado pelas mazelas naturais e políticas, durante toda a sua vida. Nunca tivera a oportunidade de estudar, de adquirir conhecimento, de conhecer outros lugares e outras pessoas e, já no final de sua vida, sem filhos, sem seu velho pai, apenas com seu marido, não mais imaginava um outro mundo, aquele além de seu povoado, apenas conformava-se com sua vida medíocre e com o tempo que não voltará. Ela até tentava refletir mais sobre a sua vida, mas não conseguia, pois, assim como todo o resto do povoado, era tola e ignorante o suficiente pra se iludir com promessas e expectativas de melhora. No final de sua vida, ainda devota de Padre Cícero, sentia pena de si mesma, sentia saudade da vida que nunca tivera, sentia curiosidade em saber como eram os sonhos que nunca tivera. E permaneceu naquele local, esquecido pelo mundo e por seus moradores, até o final de sua vida. Vida que nunca tivera.

brunão
Enviado por brunão em 21/07/2006
Código do texto: T198791