O professor

Certa vez ouvi um professor de português em aula contar uma historia. Enquanto a narrava ele se emocionava. A cena a primeira vista era meio piegas, afinal um homem grande cheio de cabelos brancos chorando não é uma cena das mais poéticas, porém só é piegas para quem não consegue ouvir com os ouvidos d´alma e não sabe reconhecer no sentimento humano a maior prova de nossa humanidade.

Bem, dizia ele que quando dava aulas em um curso de pré-vestibular em Niterói, do tipo daqueles que mais parecem um grande espetáculo, ou seja, salas lotadas com mais de cem alunos, onde o professor é mais showman do que um profissional da área de educação. Então, lá pelas tantas, uma certa hora propôs a turma que fizesse uma redação. O tema escolhido foi um trecho de um artigo de um geneticista nazista, na época da Segunda Grande Guerra Mundial, que propunha a eliminação de todos os deficientes físicos, como forma de depurar a raça Ariana, da mesma forma como se fazia em épocas remotas na Roma antiga e em Esparta.

Nessa altura uma senhora, já com idade um pouco avançada, pediu licença para se ausentar um instante da sala de aula. Contava o prefessor, que percebeu que aquela senhora estava com olhos banhados em lágrimas. Por questão de educação, não quis interpelá-la para saber o que estava acontecendo. Após alguns minutos, já recomposta porém com os olhos ainda vermelhos, a senhora estava de volta à sala de aula. Pedindo desculpa ao professor pela interrupção abrupta, porém, disse ao professor que fora muito difícil conter as lágrimas, mas que faria a redação. Então, nesse altura, o professor percebeu que o problema estava relacionado com o tema da redação.

Depois de algum tempo as redações foram terminadas e recolhidas. Quando chegou em casa e começou a corrigi-las, deparou-se então com a redação da tal senhora. Foi quando percebeu a pérola colhida.

Aquela senhora havia feito uma redação lindíssima e, passado mais de vinte anos, ele ainda guarda consigo a copia dessa redação como uma das mais bela que já leu em seus mais de quarenta anos de experiência como professor.

Bem... assim por alto, disse o professor que aquela senhora conseguiu transpor para redação sua própria experiência de vida. Que começou com uma linda história de amor, e, que com decurso do tempo tinha tudo para ter se transformado numa grande tragédia, se não fosse a capacidade do espírito humano de superar as vicissitudes. Afinal o homem que ela amou durante toda sua vida havia sofrido um acidente, do nada de uma hora para outra estava tetraplégico. E foi ai que o amor, que já era grande, acabou por se revelar imenso em toda a sua plenitude. Pois aprofundava-se na medida em que suas nuanças eram reveladas, pois assim como um oceano não era apenas superfície, mas era também profundidade.

Não se tratava de uma obrigação cuidar de seu esposo, era um profundo prazer. Na narrativa de sua redação, contava a senhora, que eram verdadeiramente inesquecíveis às vezes em que saiam a passear por noites de verão adornadas por estrelas e pela tênue luz do luar, porquanto ainda que tivesse de conduzir a cadeira de rodas. Inesquecíveis eram também os diálogos entre os dois quando voltavam do cinema, do teatro, de uma vernissagem ou simplesmente quando davam um voltinha ao redor da orla marítima ao entardecer, quando o tom do poente transformava o céu em cores suáveis e a brisa da tarde arrefecia o calor abrasador do dia. Eram horas e horas de bons papos sobre poesia, filosofia, música, política, arte e ao som de boa música conversavam literalmente sobre tudo. E às vezes sequer conversavam, limitavam-se apenas no exercício contemplativo da vida, absortos em sentimentos e pensamentos relativos a própria existência. Não havia limite no relacionamento entre eles. Situação que perdurou até quando adveio o falecimento de seu marido. Porém as lembranças desse grande amor permanecem vivas eternamente no interior de seu coração. Então ela se perguntava no seu cogitar: o que é um pé? Um braço? Ou mesmo a incapacidade de locomover o corpo, ante a capacidade do espírito humano de superar e transcender suas próprias limitações? Como alguém pode em nome do aprimoramento genético, científico ou sei lá o que, pretender extirpar da vida o “Amor”? Talvez a única chance que temos de sobreviver a bestialidade seja através de nosso sentimento, pois ele é ainda a prova viva em nós da existência do Amor.

Continuando, dizia ela: que piores são os aleijados d´alma, estes sim são dignos de serem descartados, porque se desviaram tanto do caminha da ética que perderam partes de suas almas, e ao perder alma vão perdendo também a capacidade de ser humano. A ponto de se desumanizarem de tal forma que são capazes de propor tamanho absurdo como o que propusera esse geneticista nazista.

Sobre o seu marido, ela fecha a redação com a seguinte poesia:

“Dá-me palavras de amor, meu amor.

Algo da tua essência, algo do teu sorriso,

o beijo ainda nem sonhado.

Mergulha na melodia

que fazes nascer no meu olhar.

Acaricia-me com palavras.

Excita-me, apaixona-me.

Que sejam suaves como teus lábios,

o som desta canção.

Fala-me de amor, acalma minha sede.

Dá-me tuas palavras.

Anula o tempo com teus beijos

e ficarás em mim, eternamente.”

Bonito, né?! Não me admiro que o professor tenha guardado essa redação como quem guarda uma relíquia. E que no final suas lágrimas acabem escorrendo sempre quando ele se predispõe a contar essa história.

(Omena)

Ohhdin
Enviado por Ohhdin em 05/01/2010
Código do texto: T2012314