Enquanto alguns dormem...

Visto o capote nessa madrugada em que cai uma garoa finíssima, quase um sereno. Não chega a molhar, apenas esfria a cabeça, que estava precisando de refresco.

Vou a pé, nem rápido, nem lento, apenas atento, observador, esperto.

Cruzando a praça da catedral vejo alguns dos habitantes noturnos, uma matilha cães vira-latas. Logo à frente, aparecem os nóias, pitadores de crack assustados com alguma coisa; fumam seus cigarros atônitos, em tragadas fundas, olhos estatalados e espasmos nas pernas e braços. Passo direto, olho o relógio da torre, está parado em meio dia, ou seria meia-noite?

Continuo, uma pick-up ronca com som alto na corroceria, rachando um funk carioca que descreve o funcionamento de várias armas, nomes familiares como Intratec, Glock e Winchester, bem como os calibres .50 e 7,62, que lixo.

Atravesso a rua, motocicletas passam em alta velocidade, um motoqueiro passa empinando, escapamento aberto. Penso que eu gostaria de saber fazer aquilo, mas depois, caio na real e me pergunto: "Pra quê?".

Vou seguindo meu caminho, os cães rasgam as sacolas de lixo em frente a um restaurante. E em frente um prédio bancário, travestis fumam, olham em espelhos, retocando maquiagem e nariz.

Gritam para os carros que passam, e os ocupantes atiram latas de cerveja vazias pela janela.

Um boteco de uma porta só, um balcão de fórmica, um homem gordo de óculos e barba por fazer atende o balcão, com uma toalha encardida pendurada no ombro esquerdo. Alguns senhores idosos dormindo sentados, embriagados; outros mais jovens jogam sinuca, têm cara de poucos amigos e olham feio, buscando desencorajar a qualquer um, antes que se olhe para as mariposas sentadas comendo torresmo e bebendo cerveja. Perto do balcão, vários tocos de cigarro e chiclete velho pregado no chão. Peço um Domecq:

_Só tem Domus.

_Vai esse mesmo.

O conhaque ajuda a esquentar um pouco, o sereno gelado cai sem parar, peço uma cerveja em lata e sigo minha caminhada na fria madrugada de maio.

Quando viro a esquina, no cruzamento, o motoqueiro que havia passado empinando bateu com a pick-up do som alto, acho que um não viu e nem ouviu o outro; pior para o motoqueiro, que deitado não se mexia. O SAMU chegou, prestou primeiros socorros e levou o acidentado, enquanto isso, o cara da pick-up soprava o bafômetro e tinha o carro revistado por policiais.

Resolvi voltar, andei bastante e já está bom por hoje; devo ter caminhado uns cinco ou seis quilômetros. Andei pela selva e contemplei parte de sua fauna.

Atravesso a praça e vejo uma viatura, os nóias estão todos apanhando e chorando, a polícia se diverte. As frases chorosas entram em minha mente: "_Não, ai! senhor"; "_Ai, sim, senhor"; "Ai, Ai! senhor". O relógio marca meia-noite; ou seria meio-dia?

Faltam alguns quarteirões pra chegar. Nas casas, nenhuma luz, apenas cachorros que latem enquanto eu passo, num passo silencioso; enquanto alguns dormem.

BORGHA
Enviado por BORGHA em 28/01/2010
Reeditado em 01/02/2010
Código do texto: T2056335
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