O homem do Saco

Aquilo era outro mundo, um universo paralelo. Cheio de criaturas estranhas, ao mesmo tempo tão comuns. Uma multidão de pobres vinte e quatro horas por dia embarcando e desembarcando, gente da periferia. Pessoas humildes, simplórias, misturadas a trabalhadores que se sentavam para pagar cervejas às prostitutas e travestis. Ou simplesmente molhar a garganta e esquecer o dia sacal. Mendigos que praticamente moravam lá. Loucos e evangélicos falam sozinhos, sem que ninguém dê atenção. Policiais passam, passeiam e fecham os olhos. Os balconistas já sabem o que cada freguês vai pedir. Sim, são todos freqüentadores assíduos, batem ponto ali diariamente.

— Um pretinho — pedia eu e vinha um copo quase cheio por apenas cinqüenta centavos. Sim, passei também a ser um freguês. Tomo meu café demoradamente, observando cada figura bizarra, enquanto fumo um cigarro, depois simplesmente saio e vou embora.

O café na Rodoviária Velha não tinha nem o sabor nem o mesmo sentido do café na Boca Maldita, era exatamente o contrário. Ali me sentia como qualquer uma daquelas pessoas. A diferença é que elas pediam cerveja, e eu café. Todos pareciam conhecidos, todos se cumprimentavam de uma forma peculiar, depois cada um na sua, mas o que cada um queria mesmo era um pouco de sossego. Algumas queriam também comer para sobreviver; outros davam para sobreviver, outros nem isso, sobreviviam sem querer ou sem saber.

Duas figuras femininas me atraíram maior atenção. Uma delas uma velha quase tão baixa quanto uma anã. Mas não era anã. Uma velha com cara de vovozinha querida. Pedia que lhe pagassem coisas para comer. Comia com voracidade sincera. Praticamente morava lá na rodoviária. Sempre tinha alguém que pagava para ela comer. Abria um largo sorriso, olhos arregalados e brilhantes, quase em lágrimas, ela abraçava e queria beijar aqueles que a ajudavam. Dia após dia lá estava ela. Perguntava-me todos os dias o porquê ela insistia em sobreviver.

A outra não era tão velha, embora difícil de precisar uma idade, pois essa vida que vivia passava a perna nas contas. Parecia ter cinqüenta e tantos, mas bem provável que tivesse apenas quarenta e tantos. Vestia roupas muito velhas e usadas, roupas de homem. Os cabelos cocô-de-rola, sujo e duro. Pele de caboclo, nariz ligeiramente adunco e de abas largas como de negro. Falava e discutia com um deus que ficava sempre no alto, pois ela erguia a cabeça para falar com ele. Discutia e reclamava, levantava o braço e gesticulava arduamente. Não sei se enxergava os pobres mortais, mas nunca dirigia a palavra ou olhava para ninguém de corpo presente. Não pedia nada a ninguém. Às vezes pedia papel e caneta para anotar alguma coisa que depois ia mostrar para o deus lá do alto. O papel acabava completamente rabiscado, totalmente preenchido com tinta azul. Sempre que a via zanzando perto da lanchonete, lembrava da frase de um psiquiatra entrevistado no livro-reportagem Surto, sobre o drama de psicóticos após o fechamento de um manicômio: O psicótico não consegue se organizar mentalmente nem mesmo para pedir esmola, sozinho nas ruas morreria de fome. É verdade, mas como no caso da velha com cara de vovozinha, alguém pagava comida para ela, mesmo ela não pedindo, mesmo não ganhando o mérito da caridade ou qualquer compensação. O pobre é solidário com o mais pobre. O importante naquele lugar é que todos, sem exceção, querem a mesma coisa, sobreviver. Para quê, sempre me perguntava.

Três meses de atraso no pagamento da pensão e lá estava eu na rua da amargura. Sem destino, sem nada além de um saco de roupas e o livro inacabado. Sem dinheiro, sem perspectiva, sem coisa alguma. Agora não era mais um simples freqüentador da Rodoviária Velha, era um morador. Escolhi o banco de madeira que seria o meu banco, minha cama. O bom que tudo estava ali, a lanchonete, outros comércios, o banheiro público e muitas pessoas solidárias. Pedir esmola é humilhante, mas logo se acostuma e tanto faz. O banho e as roupas sujas ficavam para a madrugada nos chafarizes, com freqüências cada vez menores. O sabonete era afanado do banheiro de lanchonetes. Depois esquecidos. É impressionante como o ser humano se adapta às mais sórdidas situações. Cigarro só guimbas achadas no chão. Mulheres... somente o toque do olhar. A sensação de abandono nunca passou, mas os dias iam passando e eu ia sobrevivendo. Minha preocupação era continuar a escrever o livro. Isso não foi problema. Nunca mais encontrei qualquer conhecido sequer, dos tempos de vaca gorda. Prostitutas e mendigos eram as únicas pessoas que estavam abertas a diálogos. Algum tempo depois apenas os mendigos, depois...

***

A noite havia caído há muitas horas, aproveitando a carona da fina e fria garoa. O que antes estava cinza, durante o dia, agora estava negro e sombrio. As milhares de pessoas que vão e vêm, e se trombam a cada passo, enquanto o comércio está aberto, desapareceram. Aqui e acolá o néon colorido e o aglutinado de pouca gente nas portas de boates destoavam do centro da cidade, vazio, lúgubre. As prostitutas com suas parcas roupas se refugiaram. Também os catadores de papel se foram há muito tempo. Os chafarizes pararam de chorar com o silêncio e dormiram. O único movimento indiferente ao clima era dos ratos próximo às caçambas de escombros e lixo espalhadas por toda parte. A Boca Maldita finalmente se calara e a praça Osório lembrava um bosque assombrado das histórias infantis, que ninguém ousava ali entrar. O frio penetrante, o vazio e o sombrio vigiavam os perdidos na noite, punks e darks, que rodeavam botecos muquifos, onde compravam bebidas baratas. As baratas estavam enfurnadas nas profundezas dos esgotos. Debaixo das marquises se ocultam os homens do saco, embrulhados como trouxas.

Estava muito escuro lá dentro. O cheiro do cobertor quase inflexível, que quando o sol esquenta muda de cor por causa das moscas, não mais o incomodava. As pernas e os ombros doíam muito por causa do frio e da umidade lá fora. A barriga também doía pela contração, pois estava encolhido o mais que podia. O papelão não impedia a friagem que vinha do chão. Uma tosse seca parecia interminável. A fome fazia seu estômago roncar e era como se tivesse um buraco enorme dentro de si. A sua bexiga estava explodindo. Precisava mijar, mas não tinha coragem de por a cabeça para fora. O mundo estava silencioso, embora soubesse que os homens e os ratos zanzassem pelas ruas escuras. As pulgas também zanzavam, mas pelo seu corpo, que já se acostumara a elas. Não agüentava mais, tinha que levantar para ir mijar. Tirou o nariz para fora, gelou. Com dificuldade, levantou enrolado na coberta e caminhou cambaleando para a praça, próximo ao chafariz, onde escolheu a árvore mais próxima. Demorou um pouco para conseguir abrir as calças. Esvaziou a bexiga num jato chocho, ora interrompido ora descoordenado. Sentiu o líquido quente molhar a mão. Chacoalhou e guardou. Enxugou a mão na coberta e voltou a se enrolar. Apesar da escuridão, distinguiu o movimento dos ratos entre as folhagens do canteiro. Pigarreou e cuspiu no canteiro. Arrastou-se novamente para seu lugar debaixo da marquise. Sentiu uma fisgada no estômago.

Estava no escuro do cobertor outra vez. Não conseguia dormir. De repente, sentiu uma dor no peito, não era física. Essa dor o remeteu à lembrança do choro de uma criança, um bebê ainda. Ouviu uma risada feminina. Uma imagem desfocada de uma mulher segurando uma criança, enquanto falava com ela em tom maternal. Não conseguia destinguir os rostos. Ouviu a mulher que erguia a criança para mostrá-la. Mas ele apenas via o vulto embaçado. Assustou-se, era a sua voz. Tirou rápido a cabeça para fora da coberta. Sentia-se asfixiado. A dor lhe apertava mais o peito. Soltou um grito de horror, rouco, animalesco, horrendo, que ecoou na Boca Maldita, na praça Osório e em toda a Rua XV e proximidades. Estava assustado e se encolheu, mas não de frio, de medo, e chorou como uma criança até adormecer. O centro da cidade estava escuro e vazio.

O frio atrapalhava a concentração, queria pelo menos se lembrar dos olhos, mas já não se recordava se eram claros ou escuros. O nariz, o nariz sabia que era igual ao dele. A boca estava apagada, não conseguia visualizar a boca, nem as orelhas. Tinha poucos cabelos, bem finos, como os dele naquela idade. A pele era branca como porcelana. Tentou mudar de posição e se encolher mais, para se safar do ar gelado da noite. Não sabia quantos graus estava fazendo, nem fazia idéia, mas sentia os pés enrijecidos, sentia pontadas nos dedos, como agulhas penetrando-lhe a carne. A ponta do nariz também estava gelado. Sentia a friagem que vinha por debaixo dos papelões que havia arrumado antes de se deitar sob a marquise. Uma câimbra fez contrair uma das coxas e teve que esticar novamente a perna. O ar regelado soprou para dentro da coberta. O sono não vinha, apesar de manter os olhos fechados. Doíam-lhe os ombros e, embora tentasse relaxar, o frio o castigava mais. Precisava se concentrar nos olhos, nas orelhas e na boca para esquecer o desconforto. Veio à mente a risada espontânea de um bebê. Quase pode ouvi-la. Finalmente relaxou um pouco os músculos. A imagem de um bebê começou a se formar, mas despertou rapidamente, apavorado. A visão de um bebê sem orelhas, olhos e boca o assustou. Não conseguia lembrar mais o rosto de sua filha. Lágrimas brotaram em seus olhos em enxurrada. Logo veio o soluço incontrolável, apenas sufocado pela coberta, áspera e pinicante.

***

O homem do saco não era como o Papai Noel, mas parecia. Não só pelo tamanho do saco, mas também porque somente as crianças podiam vê-lo. Os adultos apenas sabiam de sua existência, pois sempre diziam às crianças: Cuidado com o homem do saco, que ele pega você e leva embora, assim como falavam: Papai Noel vai descer pela chaminé e trazer um presente. Ora, os adultos nem sequer se preocupavam com o detalhe das casas não terem chaminés. A pobre criancinha ficava então matutando até o sono a embalar como iria o Papai Noel entrar na casa se a casa não tinha chaminé e a porta estava trancada à noite. Tinha medo de acordar e não encontrar o presente. Coitado também do homem do saco, duplamente, pois além de miserável, ainda era caluniado. Que diabos iria fazer ele com uma criança se mal conseguia esmola para poder enganar o próprio estômago? O homem do saco se sentia mesmo uma lenda real. Real não, apenas uma lenda. Sentia isso ao andar pelas ruas abarrotadas de gente indo e vindo sem o enxergar. Ou ele não existia realmente ou era invisível. Transitava no meio daquela gentarada toda, e ninguém olhava para ele, ninguém falava com ele, e quando ele falava, ninguém respondia. Sim, ele existe, por que se ele pensa, logo existe, alguém que ele não lembra quem, mas esse era um detalhe descartável, já havia dito isso antes. E se ele existe, então é invisível. Não, não era invisível, essa tese boiou apenas um momento em sua mente e logo foi por água abaixo. Certo dia chegou até a pensar que, sendo invisível, poderia entrar num supermercado e simplesmente pegar o que quisesse. Resolveu até por em prática esse pensamento, mas descobriu que os seguranças dos supermercados são como as crianças, pois eles o enxergam. Tentou entrar em outros lugares também, mas descobriu que embora a maioria não podia enxergá-lo, muitas pessoas conseguiam. Pensou que talvez perdesse a invisibilidade ao tentar entrar nos lugares ou passava a ficar visível quando tinha pensamentos maus, como o de pegar comida nos supermercados. Também esse pensamento pôs em prática. De repente começou a xingar as pessoas que passavam por ele para ver se elas o olhavam ou não. Constatou que era verdade. Ao xingar, as pessoas olhavam para ele assustadas ou iradas. Porém algumas simplesmente aceleravam os passos, como a fugir. Pensou então que talvez as pessoas apenas ouvissem a sua voz, uma voz do nada, como um fantasma. Será que ele era um fantasma? Será que tinha morrido e ainda não sabia? Não, claro que não, lembrou do segurança do supermercado. Ou será que o segurança não tinha medo de fantasmas? Mas como explicar a fome que sentia, afinal, fantasma não tem fome, ou têm? Só para garantir bateu com a mão numa parede para ver se a traspassava. Não, não era um fantasma.

Certa vez, aconteceu exatamente o contrário, encontrou um sujeito que o enxergava e, não só isso, falava com ele também, vejam só, e vivia a lhe dar conselhos. De repente, percebeu que toda gente o enxergava, porque quando estava com o fulano, todos ficavam olhando para ele. A princípio, pensou que estavam olhando para o estranho, mas estranhamente, só olhavam para ele, como se o outro não existisse. Vai entender. Esse sujeito era mesmo estranho, aparecia do nada e ficava dias sem aparecer novamente. Mas o homem do saco gostava muito dele. Era engraçado e o distraía por horas a fio.

Zé da Barsa era o nome dele. Vendedor falante, de voz mansa e pausada. Viajava muito, o que explicava os grandes intervalos de tempo em que ficava sem aparecer. Alto, espadaúdo, cabelos cor de palha suja, mãos grandes, nariz adunco e olhos azuis. Andava sempre de terno e gravata azul-marinho, camisa branca e sapatos pretos. Olhar penetrante, que parece vasculhar a mente do interlocutor em busca daquilo que não foi dito. Adora falar de suas viagens, dos lugares por onde passou, das pessoas que conheceu, das mulheres que conquistou. Não de forma a se vangloriar, mas como se as conquistas fossem apenas pontos turísticos que merecessem ser mencionados. Não era raro Zé da Barsa aparecer, trazendo ao lado uma dessas conquistas. Mulheres bonitas, alegres e bem vestidas. O Zé tem bom gosto para mulheres. Certa vez disse ao homem do saco que ele tinha também que tentar conquistar as mulheres. Ora essa, pensou o homem do saco, mas como? Essa vida dele não tinha espaço para isso.

— História homem, por que não?

— Ora, que vou fazer com uma mulher?

— Se não sabe tem que aprender.

— Pára. Não é isso. Mas olha pra mim. Até os ratos fogem.

— Bom, é claro que um banho e roupas limpas ajudam.

— Mas quê? Só isso não basta. Mulher quer homem cheiroso, penteado, com flor na mão e convite pra sair.

— Bom, vejo que ainda se lembra disso. Então?

— Mas como, Zé? Não se acha perfume no lixo, nem roupa limpa.

— Homem, você é esperto. Você se vira. Vai dizer que nunca topou com uma fogosa procurando comida no mesmo saco de lixo?

— Já e pus pra correr. Ora essa.

— Homem, pára e pensa. Fome por fome, abra mão de uma.

— E abro. O estômago é quem manda.

— O cérebro é quem manda; o estômago só reclama.

— Vai dizer isso pra ele.

Nessa noite o homem do saco até tomou banho e lavou as roupas no chafariz da praça e foi disposto a não enxotar nenhuma mexelhona que quisesse compartilhar os sacos de lixo. Mas foi uma noite solitária como as demais. E, mesmo que se deparasse com uma enxerida qualquer, tinha certeza que nada aconteceria. Afinal, o que poderia acontecer?