O universo do Sr. Krause III

FEVEREIRO/2009

Newton Schner Jr.

Eu acabava de imprimir algumas poucas cópias do meu conto "O universo do Sr. Krause". Ainda não havia escrito sua segunda parte, embora já tivesse seu esboço à minha disposição. E tendo-as em mãos, decidi fazer uma visita a meu velho novo amigo. Há meses eu não o via. Contente, eu queria mostrar-lhe o que havia escrito a seu respeito, como um sinal de boas recordações.

Como sugestão que me fora feita nas vezes anteriores em que estive em sua casa, decidi abrir o portão e tocar a campainha ao lado da porta. De braços virados para trás, adotando para mim aquele velho costume de Heidegger, esperei alguns poucos segundos até que a porta da garagem fosse aberta pela Sra. Krause. Ele, o Sr., por sua vez, abria, ao mesmo instante, a porta à minha frente. Levou alguns instantes até que me reconhecesse. "Amigo, é você? Entre... Vamos!". Conciliava ele sua fala com a mastigação do que aparentava ser amendoim torrado. O dia estava frio e como bem pude notar, meu amigo estava bem agasalhado.

Ficamos logo no primeiro cômodo, na sala. "Estou passando rápido, apenas para deixar este conto que escrevi a seu respeito", disse a ele em um misto de timidez e contentamento. Que momento mágico compunha-se naquela tarde cinzenta, quando mostrava um escrito àquele que me foi o seu principal componente, seu personagem central! Feliz, ele apanhou outros óculos e arriscou-se a ler os primeiros parágrafos em voz alta. Sorriu, enquanto esteve a ler minhas descrições sobre sua aparência. Esforçava-se para dar continuidade, até que em meio àquela mastigação disse: "Leio depois... Agora minha vista não está boa".

"Trouxe-lhe mais cópias, se acaso o senhor desejar mostrá-las a alguém", eu disse. De fato, carregava cerca de quinze cópias do mesmo conto comigo. Sequer o havia revisado. Quando alguns dias depois eu o mostrava a alguns familiares, no mesmo instante eles, lendo em voz moderada, logo achavam erros grosseiros. Que problema é a ansiedade! E, contudo, não me foi possível contê-la; naquela tarde, apesar do clima não ter sido propício à euforia, eu me apressava para mostrar ao Sr. Krause uma lembrança do nosso primeiro de muitos outros encontros.

"Sim...", respondia ele, "depois eu mostro para a filha". E então, ficamos em silêncio. Por um minuto, parecia que estávamos sem assunto. Ele tossiu. Ofereceu-me um pouco do seu amendoim. Ele o segurava na palma da mão. Nela, ele também segurava o óculos que costuma usar para leituras. Tomou mais alguns grãos e tossiu. Levantou-se então. Disse que iria ao banheiro. A tosse, agora, parecia acompanhá-lo. Eu, distraído, não percebia a gravidade daquele momento. Pensava ser algo normal. Levado pela curiosidade, meus olhos acompanhavam os móveis e toda a decoração daquele lar aconchegante. E subitamente, eu o havia perdido de vista. Um ou dois minutos se passaram sem que eu ouvisse sua voz, sequer outra tosse. Mas não eu não estava preocupado. Pensava que tudo corria bem.

Da cozinha soou uma voz em tom de desespero. "Moço, venha me ajudar!". Quando me dei por conta, lá estava a filha do Sr. Krause. Ela não recordava meu nome; eu, àquele momento, sequer sabia o seu. Colocara os braços do Sr. Krause para cima e o pediu para tossir. Sentado ao sofá, logo eu me levantei e fui em sua direção. "Bata de leve nas costas dele... Ele está afogado, sem ar", dizia ela. Eu lhe pedia desculpas, justificando que achava que ele estivesse no banheiro. "Eu não sabia que ele estava afogado... Simplesmente o perdi e em questão de segundos, agora o vejo afogado! Por favor, não me leve a mal... Não foi culpa minha!". "Não se preocupe... O pai é teimoso. Insiste em comer amendoim com casca. Eu estava do lado de fora, mexendo com algumas roupas. De longe, eu percebia que ele não dizia nada e parecia estar se esforçando para respirar. Então vim até aqui para ver o que estava acontecendo. Dias atrás ocorreu algo parecido. Minha mãe é surda, então não ouve quando meu pai pede por ajuda. Ela usa um aparelho auditivo, mas sua filha está fraca e ela sempre está adiando a troca". E segurando os braços do Sr. Krause, eu a vi perguntar-lhe: "Está passando? Você está melhor, pai?". Para nossa felicidade, ele atendeu àquele chamado. "Sim, mais... Mais ou menos", "O senhor precisa se cuidar com o que come e deixar de ser teimoso!".

Contente não apenas por vê-lo melhorar, mas também porque sendo assim, eu não mais era tomado pelo desespero por não saber agir em um momento daqueles. No entanto, nas entrelinhas daquela situação, eu me sentia envergonhado. Me era, na verdade, algo quase que humilhante portar-me daquele modo, sendo eu filho de um médico que pôde salvar várias pessoas que se encontravam à beira da morte. Como pude ter aprendido tão pouco neste sentido?

A situação desesperadora me fazia lembrar um caso que me fora contado pelo Prof. Pilatti, grande pianista, que por anos foi parceiro de orquestra do meu pai. Dizia-me ele que em certo jantar, alguém havia se afogado com um osso de peixe. Para a angústia dos presentes, a pessoa já se encontrava sem ar, pois o osso obstruía sua respiração. Meu pai, atento à situação, passou álcool junto da traquéia. Fê-lo de modo a anestesiá-la. Tomou uma faca e de modo preciso, perfurou a pele e retirou o osso. Cook estava certo, quando propôs a seguinte reflexão: é o médico um simples humano ou talvez um semideus?

"Não é possível!", deveria estar pensando a filha do Sr. Krause, "não é possível que você, filho de um médico tão conhecido, sequer saiba como reagir diante de uma situação como essa que nos ocorreu!". Eu cogitava o que ela poderia estar pensando ao meu respeito. E a inquietude pairava sobre mim, pois eu me dava conta que não havia aprendido como agir diante de um problema de saúde. Diante de mim, necessitava-se dar os primeiros passos, por conta própria, a um novo horizonte que assim como a arte, nos é essencial: a medicina.

Voltamos para a sala. Agora recomposto, Sr. Krause conversava comigo. Sua filha, de modo apressado, penteava o cabelo a perguntar ao pai: "Você irá ficar aqui, não é mesmo?". Interrompendo-a, eu questionei: "Vocês estão de saída? Porque se sim, eu já me vou. Não foi minha intenção prolongar o meu tempo aqui". "Não", dizia ela, "pode ficar aqui. Eu e minha mãe é que vamos sair agora. A filha da cunhada nossa, do irmão do Arthur que faleceu, tropeçou em uma pedra à frente de casa. Quebrou uma porção de ossos. Teve de colocar parafusos, inclusive, porque fez uma operação. E mesmo assim, ainda enfrenta problemas". Eu quis partir, mas como percebi que o Sr. Krause ficaria sozinho, correndo o risco de se afogar novamente, decidi permanecer. Era uma questão de segurança.

Antes de sair, sua filha ainda me disse: "Às vezes eu penso em sair para fazer algo, mas não posso. Minha mãe não escuta e então eu nunca acabo sabendo se está tudo bem por aqui". E eu lembrava, naqueles instantes, por mais que não me pronunciasse a respeito, da época em que meu pai enfrentava problemas com o alcoolismo. Eu e minha mãe fazíamos como que um revezamento para atendê-lo. Um descuido era fatal. Que culpa eu sentia, quando, levado por uma distração qualquer, eu o perdia de vista e o encontrava descalço, sentado à frente de algum bar, como se estivesse abandonado! Este, inclusive, foi o cenário de seu último momento: fugira e caíra de uma cadeira, de modo violento, ao ser apanhado em um bar. Com o passar dos dias, sentia dores, mas, à teimosia de Krause, resistia a qualquer tratamento. Quando conseguimos levá-lo ao hospital, a conseqüência daquele tombo se havia agravado de tal modo que dali em diante, ele passaria a viver, até os seus últimos dias, em um leito. Tudo ocorrera como o famoso efeito borboleta. Uma distração e um triste fim.

Já sozinhos em casa, eu e Krause conversávamos sobre métodos alternativos de medicina. Ele me falava sobre algo que o havia curado. "Tem feito frio esses dias... Não se pode nem sair de casa! Fiquei ruim, com resfriado. Logo, melhorei: tomei um copo de água com poucas gotas de creolina. Aprendi com o seu pai! Funciona mesmo!", "Creolina?", "Isto! Normalmente a usam para animais, mas serve para gente também... Alguns usam duas gotas, outros uma só. É uma beleza!". Curioso, eu o perguntei se eu poderia tomar. Ele, em contrapartida, disse que isso não faria efeito se eu não estivesse doente.

A televisão estava ligada enquanto éramos levados por aquela conversa proveitosa. Eu não pretendia deixá-lo enquanto sua esposa e sua filha não retornassem. Por um momento, ele tomou o controle remoto e aumentou o volume, de modo que tive dificuldades para compreender sua fala. Ele, no entanto, talvez não percebesse que acabara de criar uma concorrência em relação à sua voz.

Olhando para um belo quadro, eu lhe perguntava: "Senhor também o conseguiu com os russos daqui?", "Não... Esse foi a mulher que comprou. Acho que não foi com eles". Muitos dos russos que circulam por minha região, com seus trajes inconfundíveis, ocupam-se da venda de seus bordados - alguns, em especial, são feitos em formato de quadros.

Sem o que conversar, dávamos atenção à televisão. O céu continuava cinzento. Tudo estava calmo. Não ventava. À frente de sua casa, uma quietude quase que desértica. A delegacia havia mudado de endereço. A casa ao lado, de madeira, estava para alugar. E da garagem do centro de atendimento a crianças pequenas, não provinha um só barulho.

Não demoraria até que pela outra porta aparecessem duas senhoras. Não eram as mulheres que eu estava pensando. "Oi", dizia de longe uma delas, entrando em seguida. Era de casa, por assim se dizer. Krause levantou-se e foi ao seu encontro. Eu o acompanhei de sem que esperasse, fui apresentado a elas. Margarida era a esposa do falecido irmão de Arthur; Emma, sua irmã. Ainda nos cumprimentávamos quando chagaram mãe e filha. Parado e em pé, observei com contentamento aquele reencontro inesperado.

Voltei para a sala e lá fiquei. Ocupava-me da observação daqueles cômodos, ao som de todas aquelas vozes. Pensava, então, que era tempo de partir. Não queria parecer um intruso, sequer um estranho. Mas ao me levantar, foi-me solicitado que me sentasse à mesa com os presentes.

Por certo, belíssima era a cena. A família reunida conciliava falas sobre a situação da filha de Margarida, com lembranças do passado. A água fervia. Uma boa era de chimarrão me era apresentada. Krause, como que em êxtase, falava em alemão. Cantava para mim, paralelamente às conversas das senhoras do canto direito. Dizia coisas a meu respeito. Contou-lhes de quem eu era filho. E juntos, para sua vontade, cantamos "Die Fahne hoch".

Emma me dirigiu a palavra. "Mas me conte... O que você - um jovem - faz aqui entre nós velhos?". Não desejara ouvir resposta alguma. Apenas riu, junto dos outros que estavam à mesa. E eu. Ah, eu apenas soube sorrir. Tinha em mente tanto o que dizer-lhe! Mal sabia ela quão bem eu me sentia ali, bebendo da mesma água, ouvindo as mesmas histórias! Como é incrível ouvir recordações contadas de irmãos para irmãos, cujas circunstâncias da vida os levaram a separar-se! Sempre, em meio a situações como essa, regadas a uma simplicidade sem preço, de modo inesperado surgem histórias fantásticas! Queria eu, àqueles instantes, fazer da minha mente um aparelho que pudesse registrar os mínimos detalhes de sons e gestos, cheiros e imagens, das quais eu sempre pudesse ter acesso!

E o destino me havia reservado uma nova resposta. Eu jamais teria imaginado que outro senhor, sorridente por si só e muito trabalhador, era, na verdade, irmão de Krause. Falava-se a seu respeito à mesa, quando perguntei: "Não seria um senhor que sempre está a trabalhar à frente de casa, aparando a grama?", "Exato!", alguém respondia. E era o próprio. Seu nome era Ari. Contaram-me que ele, por causa de uma meningite, ficara mudo. Mas que nunca deixou de trabalhar. Exerceu, durante a vida toda, a profissão de jardineiro. Pelo que me foi dito, era ele profundamente cuidadoso com o que fazia. "Ele é uma pessoa bastante esforçada! Eu sempre o vejo com uma enxada, à frente de casa, apesar da idade avançada. Sempre que me vê, ele sorri para mim!".

Seguiram-se quatro rodadas de chimarrão. Agora, a água se tornara morna. Alguns já não queriam mais bebê-la. E eu percebi ser minha hora.

"É cedo", diziam. E antes de partir, tomei nota mental da erva que havíamos tomado. Agradável era o seu sabor e atraentes eram suas propriedades medicinais. Despedi-me dos presentes. Disse ter sido um prazer conhecer aquelas duas senhoras. E assim, fui acompanhado pelo Sr. Krause até o portão. Deste modo, segui adiante. Tomei rumo de modo aliviado, pois apesar de ter visto meu velho amigo quase que próximo da morte, tudo acabara bem.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 12/02/2010
Reeditado em 08/05/2010
Código do texto: T2083819