Por um par de olhos

Uma chuvinha mansa – daquelas como diz o ditado popular: “de molhar bobo”. Melhor não tê-la desafiado e saído. Mas naquele dia algo diferente aguçou-me o desejo de estar entre pessoas; mesmo que não as conhecesse. Bastava-me senti-las presentes. Bobagem a minha. “Quantos natais passei sozinha; trancafiada – tomando vinho; vagueando entre pensamentos – eu e eu”.

Já tinha saído. E agora importava eu me dar bem em algum lugar; onde tivesse pessoas. Sentia-me carente - embora já me imaginasse acostumada a tudo depois de tantos anos. Parou o primeiro taxi. O motorista solícito olha-me por cima dos óculos de lentes grossas e pergunta:

- Para onde senhora? – Abrindo a porta.

Olhei-o como se estivesse perdida e não o respondi por alguns instantes – senti-me em transe. Retomada, ajeitei a bolsa, olhei-o novamente e então tive a resposta pronta:

- Não sei senhor! Preciso ir, mas não sei pra onde. – respondi tentando disfarçar o meu deslize, enquanto assentava.

- Mas senhora – disse ele sorrindo – indique pelo menos uma direção: - para o centro, algum bairro?

- Vamos para o centro – respondi demonstrando alguma segurança; embora não a tivesse.

Desci próximo a um restaurante que quando estudante frequentava-o amiúde. Local, aliás, que me trazia muitas lembranças; boas e más. Certa vez, numa sexta-feira, após sair do trabalho, de férias da faculdade, conheci Amarildo. Mantive-me apaixonada por ele durante longo período. E numa atitude impensada – ou acertada - propus que separássemos. Rompemos o relacionamento e eu nunca mais o vi; sequer tive notícias de seu paradeiro. Houve aventureiros que apostaram que Amarildo estaria no exterior. Mas foram apenas suposições; nada de concreto. “ Coisas do passado – pensei. ”

Entrei ressabiada, olhando para um e outro lado. As mesas lotadas de pessoas. Fato que me alegrava, afinal, como havia estabelecido para mim naquela noite, estava perfeito; pessoas com fisionomias alegres, conversando, sorrindo, outras se acariciando. O clima estava ótimo. Era o que eu queria.

Escolhi uma mesa no canto onde eu pudesse observar a tudo e a todos. Sentei-me. O garçom, zeloso, veio sorrindo, cumprimentou-me, limpou a mesa - a olhos nus era impossível ver algum sujo -, sacou do bolso um talão e dirigiu-me:

- O que quer para beber senhora?

Olhei-o – tentando roubar-lhe o brilho daqueles olhos – e suspirando, respondi:

- Gostaria de um vinho, senhor! Aliás, como minhas saídas só acontecem vez ou outra, gostaria de um vinho de excelente qualidade. Traga-me uma prova, por gentileza.

- Sim senhora. Será providenciada. – Respondeu o garçom expressando uma alegria incontida – talvez pelo prazer de estar trabalhando ou qualquer outra coisa que estivesse fazendo seu coração vibrar.

Observei aquele trabalhador alegre se afastar. Sequer tive vontade de reagir à sua falha: - perguntou-me apenas o que queria para beber, e para comer? Por acaso estava em um restaurante sem a intenção de comer alguma coisa? Bobice: poderia querer somente beber. Interessou-me naquele momento apenas observar os gestos de sobriedade de um homem; aquele homem: trabalhador numa noite de natal, alegre, mesmo distante da família – talvez nem a tivesse.

Tabagista – adepta inveterada deste maldito hábito; senti vontade de fumar. Por sorte escolhi uma mesa na área de fumantes. Pensei: “menos mal, detesto incomodar as pessoas e não há incômodo maior que soprar fumaça na cara de um antitabagista”. Mesmo estando em área reservada esperei que alguém acendesse um cigarro. Não tardou e um senhor esquelético, olhos empapuçados, soltou a primeira baforada, logo à minha frente. Levei à boca o que escondia na palma da mão esquerda e com a ligeireza o acendi. Cada tragada era um prazer – maldito –, da dependência que em breve não faria mais parte da minha vida. No próximo mês minha bolsa não carregaria mais nenhum cigarro, tampouco sacaria algum dinheiro para adquiri-lo. Estava determinado.

Outro garçom veio em minha direção empunhando uma garrafa e sem dizer palavra colocou a prova em minha taça, afastou-se um pouco e aguardou que eu pronunciasse. Eu não conhecia aquele vinho.

- Perdão senhor, não gostei. Achei-o muito ácido. Dirigi-me a ele com vontade de perguntar-lhe sobre o garçom que havia me atendido quando cheguei. Mas me contive.

- Não há problema senhora. – Trarei outros quantos forem necessários. Importa-nos que o freguês fique satisfeito. E os paladares para degustações de vinhos são completamente singulares.

Na terceira prova pedi que enchesse a taça. Acenei para que me mostrasse o rótulo. Oportunamente passaria numa adega para comprar algumas garrafas daquele vinho. Afinal, tomava vinhos com certa frequência em casa. E apesar de já ter provado muitos, aquele me pareceu bem mais delicioso.

Tomei algumas taças daquele vinho, mas sempre servido pelo segundo garçom. E cada taça degustada enchia-me de prazeres; o ambiente, as pessoas, a música ao vivo – violão e voz. Estava uma noite perfeita, apreciável.

A madrugada já rondava e o efeito das taças de vinho fazia com que eu enxergasse as pessoas meio embaçadas. Mas estava de bem comigo. Tomei ainda mais duas taças – acho - e chamei um taxi. A noite tinha sido das melhores, embora eu não tivesse conversado com ninguém além dos garçons – não me lembrava de muitos detalhes.

Fui para casa. Ao abrir o portão, avistei luzes acesas no meu apartamento. Gelei. Abri a bolsa com fúria à procura do celular. Achei-o.

- Sou moradora do apartamento 203 da rua Mariana, 719, e alguém o invadiu. – Disse ao policial atendente com voz arrastada.

- Deslocarei uma viatura imediatamente senhora. Mantenha-se calma e bem distante até a viatura chegar. Não tente entrar no apartamento. – Aconselhou o atendente.

Mantive-me afastada conforme determinação do policial. Minutos após, a viatura policial estacionou em frente ao meu prédio. Cambaleante, esbaforida, fui de encontro aos policiais:

- Senhores, – disse – sai e tomei uma boa quantidade de vinho, mas apaguei todas as luzes ao sair – é costume antigo; nunca deixo luzes acesas. Tem alguém no meu apartamento.

Dois policiais entraram no apartamento e encontraram um rapaz deitado no sofá como se houvesse sido autorizado, ou fosse proprietário. Algemaram-no e o conduziram ao distrito policial. Resolvida a questão subi e como estava bastante embriagada, dormi.

No outro dia, logo pela manhã, fui intimada a comparecer ao distrito policial para esclarecer alguns fatos que o acusado alegava. Tomei um banho para restabelecer e fui. Após responder ao delegado algumas perguntas, levaram-me para uma sala e pediram que eu aguardasse. De repende, entra na sala, escoltado por policiais, quem eu jamais imaginei; com um pedaço de papel à mostra:

- Você me enviou este bilhetinho com o seu endereço e as chaves pelo garçom Valdomiro. Lembra-se? - olhe-o.

“Quando sair do trabalho vá para o meu apartamento e aguarde-me lá. Na geladeira tem cervejas. O prédio não tem porteiro. Rua Mariana, 719, apto 203. Assinado Beth”.

O delegado baixou a cabeça, coçou a barba, esboçou um sorriso cínico, olhou-me e rispidamente determinou:

- Solte-o. - E a senhora, por gentileza, acompanhe-me até à minha sala e prepare-se para que suas justificativas sejam convincentes...