"Ah, que legal, e você acha que estou bem-vestida ?"

"Sabe, eu percebo que minha existência não têm lá muito sentido. É como se eu visse as coisas através de um vidro, como se fosse um grande e enorme copo que impede minha comunicação com os outros, ao mesmo tempo que eu sinto um certo consolo de estar isolado", ele disse.

"Ah, que legal, e você acha que estou bem-vestida ?" , retruca ela, com olhos inquisidores, medindo cada detalhe de sua própria roupa, para verificar se alguma coisa mínima, como a meia-calça de cor característica de pele, não constrastava significantemente de seu sapato.

Num primeiro momento ele percebe que gostaria de dizer "Ei, veja ! Estou no vidro mesmo, porque sequer você ouviu o que eu falei !" Mas não há razão. O erro não é dela. Ela vive no mundo. Ela sente , respira e consegue se comunicar na velocidade e razão do mundo. Não ele. Ele vê o mundo como uma grande e dificílima incógnita, tão difícil como aqueles antigos exercícios de cálculo que fez há muitos anos atrás. Mas na matemática pelo menos o resultado era preciso, se não o era, pelo menos poderia se atingir o resultado válido mais aproximado. Diferente do que ele sentia sobre a vida. A vida , para ele, era um grande maniqueísmo, o sentir-se bem e o não sentir-se bem. Não que ele realmente conseguisse determinar isto, ele apenas sentia isto. Ele lembra da descrição de pensamentos de pessoas que são 'bipolares' , pessoas que apresentam um comportamento num segundo e , quando menos se espera, passam para outro. Algo do tipo de uma euforia extrema, para uma raiva descontrolada, quase hidrofóbica. Com ele a sensação era diferente. Era bem mais próxima a fábula da raposa e das uvas, na qual o animal tenta alcançar o alimento em questão, mas não consegue por mais que se esforce. Mas há uma diferença, enquanto ali a raposa se afasta desdenhando o que não consegue abocanhar, ele sente uma tristeza inquietante. Talvez a famigerada melancolia. "Então", dirão alguns "peça ajuda aos que o cercam ! " , e ele sorri deste próprio pensamento, pois tão isolado que ele se tornou, que ao dirigir um tipo de comentário deste tipo para a pessoa que até então dividia sua cama, o lugar mais sagrado de um ser humano, no qual ele pode satisfazer seus apetites, como também descansar o corpo da incansável luta diária de sobrevivência, mesmo assim, ele era um completo estranho. Na verdade, essa talvez seja a maior dificuldade de se expressar junto aos outros. Ele mesmo se achava estranho. Mas não é um estranho de , por exemplo, um quadro torto na parede, na qual podemos acertá-lo rapidamente e ele se torna tão regular quanto os demais objetos geométricos que o cercam. Um estranho não definido, um estranho que ele mesmo não conseguia definir. Vezes se sente como se fosse uma matéria amorfa, inanimada, totalmente destituída de sentido e valores. Outro momento, é algo totalmente engajado em algo, procurando como todo slogan moderno de felicidade, "fazer mais que o possível". A diferença do bipolar, é a consciência, ele a têm dos dois lados, tanto quando se sente modorrento, sem forças e totalmente apartado , como quando procura chegar a algum resultado. Mas eis o problema. O resultado. Não consegue conceber isto. A execução de algo, ou melhor a visualização da concepção de algo sempre lhe é agradável. Mas o resultado costuma trazer o gosto acre de derrota. Mesmo sendo uma vitória. Ele sente nisso até quando termina um livro. É como se aqueles que foram tão importantes pra ele quando de sua leitura, se tornassem estátuas de sal sem vida, quando não têm mais as linhas lidas discorrendo frente as seus olhos. Ele pensa que talvez o autista seja o mais próximo de suas sensações. Para o autista, aquilo naquele momento existe e é importância vital. Para ele, não é de importância vital, mas parece que só existe naquele momento. E fica então o vazio, na verdade, é mais um esvaziar que um vazio. Como se tudo aquilo que lhe foi importante, perdesse seu significado e valor. Ficando só o gosto da melancolia da perda de algo que foi importante, mas que não mais faz sentido. Ele se lembra de um filme, com artistas famosos, que um dos personagens começa aos poucos, simplesmente parar e ficar preso em si mesmo. Que precisa de um toque para voltar ao mundo que o cerca, o mundo supostamente real. Com o tempo, mesmo com os toques, seu retorno se tornava cada vez mais incerto e suas ausências eram cada vez mais prolongadas. Até que um dia, ele não mais retorna seja lá daonde ele esteja. Ele pensa que talvez aconteça o mesmo com ele, que talvez um dia simplesmente ele não mais estará lá. Um dia simplesmente o que ele vive em sua mente vai ser tão mais poderoso que os seus demais sentidos vão se mostrar ineficazes de trazê-lo de volta. Ele sorri, porque apesar de ser uma idéia estranha, no fundo, não o assusta. Não é algo relacionado ao seu desejo. Apenas o é. "Sim, você está bem-vestida" , é o que ele lhe responde. Porque afinal, o que ele dissesse não lhe faria diferença. Como não o faz à ninguém.

Ricardo Boratto
Enviado por Ricardo Boratto em 23/03/2010
Código do texto: T2154782
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