Para arranhar o texto

(In: Alma de piano, Nova Fronteira, 2011)

- “ENGENHO DE DENTRO! é aqui, filho!”

Acordei; puxo a corda do sinal; estou saltando: rua.

O reflexo de algumas buzinas aumenta e diminui à medida que vêm e vão.

E agora.

- Agora você dobra ali, depois ali; ali, mais adiante; acolá na primeira esquina entre a esquerda e a direita; um cruzamento; reto, reto... toda a vida [que exagero!]; ah, você conhece o borracheiro que está lá na calçada do botequim do Marco - há mais de vinte anos, não conhece?

Não, não conhecia. Nem borracheiro, ou Marco.

- Pois é naquela rua lá. Lá mesmo. Não tem erro.

Tchau / Tchau.

Em pé, estacado na calçada em cujo pavimento imundo se pisa, eu piso; no pavimento da calçada, sujo de água pardacenta, - eu, sapato de pelica negra, poças de lama da última chuva, meia marrom em descompasso com a calça da lavanderia, branca, pedrinha, perfume, poeira, paciência, faiscou; tive vontade de chorar. Mais uma vez, dentre as tantas outras de uma vida, prendi. Por causa do sol. Detestava-o. Com força. E até hoje, na rua, tremeluziam as sombras pertinentes às nove; embora nove e meia. Meia hora, em tese, faz... faria diferença substantiva. Que raios o partam, este sol que só me luz!

Sometimes é mais peculiar olhar as pessoas pelas sombras do que pelos obstáculos que são seus corpos, anteparos à luz do sol, mães da sombra. Algo já dito, por mim, tantas vezes quantas são as vontades de dizê-lo. - Não fica muito longe dos que conversam conosco mirando-nos a boca, em lugar dos olhos almados. O problema, óbice de visarmos sombras é o que vem refletido - literalmente! - quando encontramos uma demasiado violão, se é que me entendem, por assim dizer curvilínea, cheia de cinturas-finas-ancas-largas-pernas-grosas-etc. Muito difícil, nesses casos, determo-nos tão-só na sombra, sem erguer a visão curiosa dela ao obstáculo-anteparo que a gerou. Tente! (Esporadicamente falo em inglês... não o inglês castiço de que gostaria de dispor; mas, um idioma interessante o bastante para, não tendo rivais, fazer-se único em um quadro de outras línguas pátrias, e, por isso - insubstituível.)

Engenho de Dentro é bairro, mas podia ser cidade, país, planeta: tem de tudo. É um chamego que pega bem àqueles nascidos da beleza do lugar de onde falam... Aliás, atentos, duplamente de onde falam: falo dele - digo, a seu respeito - e dele - melhor, nele.

Tirante isso, como se percebe, nasci ali. Ou foi, talvez... pode ter sido, muito provavelmente... que tenha sido no Engenho Novo, ou algo que o valha: confundo sempre, por mérito da pouca freqüência com que os visito, os Engenhos. Um não há de, no entanto, ser igual ao outro - não em tese. Aos infernos com a tese: é retirarmos um argumento só, é a argamassa ruir, inanindo e tolhendo a si, como uma fortaleza pétrea, de folha e cortiça, embora.

Sobre a fixidez de pedras em corte paralelo, respiro, bocejo, olho, desanimo, enxugo, ajeito, impaciente, atravesso.

Deveria existir, de acordo com as coordenadas que me foram gentilmente cedidas, por um senhor aposentado e amigável, um cruzamento logo após o segundo sinal - ou me enganei. Para que se evitem as surpresas deletérias ou superficiais, aviso, desde já, que, no fim destas páginas, não encontrarei (e nem o senhor leitor encontrará tampouco) aquilo atrás do quê venho estando desde o princípio; não verei borracheiros, bares ou Marcos, as referências a cujo encalço me colo, não ficarei mal-humorado, não começarei a gostar do sol, não voltarei de táxi (nem de ônibus com ar-condicionado, menos ainda), não mudarei nada, por dentro ou por fora, graças ao ou por culpa do passeio ao Engenho Novo - ao Engenho de Dentro!! Impossível é, pois, aos que esperem das letras conteúdo, que perseverem serenos nesta história, que os afoitos persistam, o afoito se satisfaça! Aviso.

Pois bem. E não tendo encontrado o que procurava, apenas o sabor da trajetória restou, uma vez que apenas a trajetória restou. É como a amizade: nada além da amizade fica após os tempos. Porque o caminho, senão sempre, amiúde é mais importante do que o objetivo final. Por sinal, parece ser com isso que lidam os asseclas da “Atrição”. Um minuto: por que esses tais prosélitos, de quem acabo de falar, afirmam que “Atingir a Deus, seja pelo amor a ele, seja por atrição, - o medo de um inferno de fogo”? Como se vê, até no que aparentemente é o sumo, o busílis, o punctum saliens da Teleologia (the place where the goal is even better than the way), até aí a conduta, e, pois, o caminho, é o mais importante, a única coisa, então, a se levar em conta aceradamente, para não dizermos, não sei por quê, sempre; então que vá em inglês. COMENTÁRIO DISPENSÁVEL, AGORA: (Frequently, we forget the goal, even if we have reached it... then we always, I mean, I’m sorry, we sometimes remember the little things - even the traps - that could have happened on our way.) Não digo que o melhor da festa seja o esperá-la, a dois porque isto é verdade, e porque que o é, é! No doubt! Espero que sim.

Euplócama, moreninha, gordota e com um vestido de tecido esgarçado porém digno, junta a três outras meninas mais uma senhora (à exceção desta última, as outras três-inhas parecia terem a mesma síndrome daquela em quem, especificamente, sabe Deus por quê, detive o olhar: muito me desculpem os médicos, mas meu diagnóstico para as quatro foi - Síndrome de Down), nada vi, em princípio, exceto dois olhos enormes, lentos e ativos, muito curiosos, rodando nas caixinhas orbiculares embaixo da testa, cabelos presos num rabo-de-cavalo. Há curiosidade em todas as facções dos seres viventes, mesmo nas superiores. Lembro que os autistas se consideravam (reflexiva e/ou passivamente) superiores aos normais. Em resumo: aquela doce moreninha euplócama era, por alguma razão - oh Deus, ela me olhou! - extremamente superior a mim e àquela multidão que, ou não a olhava, como eu a não fitei nos olhos um minuto sequer, embora os tendo admirado, ou com ela muito se admirava, espantando-se, sei que, no fundo, com sua preeminência e nobreza a par de nós todos inermes. Ela sorriu; eu, cabeça baixa (ainda há dúvida?).

Eu sorri por dentro.

Se bem que haja sempre algo a mais a se fazer além dos muros de um bairro, enfurnado ainda ali onde estava, resolvi que, sem o quê, procurávamos pela rua, com muito maior esmero do que o próprio Sans-souci de Frederico, o Grande. Como um primeiro passo nas letras. As respirações o homem haviam prendido, sem a mínima compaixão, pouco condoídos. Eu, vinha ameaçando com o esgar a carroceria, ameaçando buzina, vinha com vontade de morder a primeira aventura que, abusada, se me arremessasse em fileira (ou em uníssono que fosse): desde que a imagem da “Olhos-de-Pérola-Preta”, inextinguível, até então me feria, arranhava-me também; como, até hoje, me arranham a alma as sombras negras e redondas que seu sorriso em esfinge transpuseram, ameno, à minha perplexidade! em mesmo sorriso com que só agora lhe pude retribuir - mas, acreditem, a exata doçura ingênua por intermédio da qual me sorriu ela a mim, pérola preta que arranha e acaricia lentamente e para sempre, pude eu ceder-lhe, apesar de, com certeza, numa escala de amor infinitamente menor (já que cada um dá de si infelizmente o quanto tem e nada além).

Eu fico cingido nos muros do bairro. Eu fico, mas, com prazer, fico.

Aquilo à frente será, quando mais próxima, a segunda cena inolvidável deste meu trajeto: um mendigo em trapos dignos; uma coleira, em cujas extremidades ele e sua cadelinha em reboliço e alegria; também ela em trapos dignos. Das cenas mais líricas e diáfanas já apresentadas, se bem que dolorosa como a dor da inteligência. Digníssimos. Neste momento (e para dizer a verdade até agora) não me ocorre um adjetivo que monopolize o mendigo e a cadela, que os açambarque de um golpe, a marretadas. Senti-me, por isso, inócuo como a terra adubada, fértil mas sem semente. Um. “À medida que nos secamos, vão-se-nos, pouco e pouco, as fontezinhas de adjetivo, deixamos de restituí-los ao chão, que é, no fundo, o lugar de onde surdem às pencas.” Se com semente, mais; se sem, mais ainda. O primeiro sintoma do envilecimento, se não mais forte então menos equivocado, é a incapacidade de adjetivar.

E como é de seres humanos que estamos a falar, há (Dois) alguns - dos quais - a quem serei eternamente, a quem a vida toda serei grato, tão grato quanto a rua do borracheiro, do Marco, grato como a retidão da rua que não se dissipa, há esses. Falar verdade, existem mesmo as pessoas a quem derramo a tendência - tendendo à certeza - de que as coisas vão bem, sempre melhores do que estiveram. Os que tiverem ouvidos ouvirão probabilidades e assertivas. Bela polissemia do mais indicativo dos subjuntivos, que é como, não raro, vemos, ao menos eu vejo o mundo assim.

E se a língua podia expressar estas matérias, era que Deus existia.

Enquanto isso passam fileiras de rato e pulga nos esgotos da rua. O sol reluz: há tanta coisa boa a fazer; e o mundo, só ontem, por exemplo, me sorriu um sorriso franco. Como a chuva, bebo o vento.

(E nunca mais deixarei de sorrir também para fora o sorriso belo de uma euplócama com Down: se as intenções não se condensam em pedra de chuva, para que serviu a matriz que as gerou? às favas profundas com todas! morram sem ter nascido!) O homem, deveríamos prestar muito mais tempo ao concreto de um ato do que à fumaça que não chega a matar, coitada, porque não sabe, mas que, arranhando e estigmatizando ainda pior, porque são marcas que vão, que se vão como os olhos sumarentos da tristeza, da névoa, do ardor, da rocha, se vão para o lugar entre o menos proveitoso e o mais deserto dos demais - aquele onde há terra, adubo, pá etc., etc., vontade, etc... menos ação... aquele onde há tudo, mas onde falta o sopro da ação.

Buzina. Sol. Rato.