A Fatia Minha

Fátima tinha oito anos quando sua mãe morreu. Ela era a oitava dos doze filhos, que constituía aquela família. Essa família morava duas casas após a nossa. O que mais me intrigava é que a casa era tão pequena, como poderia caber tanta gente lá.

Fátima era a mais feia de todas as criaturas que eu já tinha visto. Suas irmãs eram mais bonitas. Mas eu a amava tanto. Não me cansava de observá-la. Era muito divertido vê-la deslizar tão graciosa pelo tronco de uma árvore no quintal de sua casa. Seu cabelo não balançava com o vento, porque ele parecia mais um emaranhado de pêlos do que realmente cabelo, mas ela sorria e aquele sorriso confortava meus olhos cansados de ..., bem essa é outra história.

Ela sempre batia à minha porta pedindo um pouco de sal. Não era o sal que ela queria. O que realmente queria era conversar comigo, mas eu a hostilizava ao mesmo tempo em que a amava.

Como podia eu amá-la! Ela era tão feia. Seu vestido sempre tão curto e sujo, mas o sorriso dela fascináva-me. Como podia sorrir em meio àquela vida que para mim não era adequada.

A vida adequada, naquela época, era estar limpa e não sorrir. Fatiminha, assim suas irmãs a chamavam, tornou-se um bálsamo para os meus dias de aflição. Eu sentava ao pé da escada, que dava para o meu quintal, para vê-la em sua alegria ao deslizar pela árvore, correr entre as galinhas e sorrir o tempo todo. O sorriso dela era o meu. O único momento em que sorri foi por meio dos sorrisos de Fatiminha.

Como eu a amava! Mas ela queria apenas o sal para salgar a comida que ingeria no almoço. E eu queria poder dar todo o doce da vida que ela merecia e o que consegui dar foi apenas o sal e o meu olhar hostil.

Certa vez chovia, ela brincava na enxurrada e sorria e, eu de minha janela a observava. A felicidade dela contagiava-me a tal ponto que meu corpo se transportava junto ao seu naquela enxurrada. Eu sorria com ela e éramos muito felizes. O nosso amor era tão sublime naquele momento. O amor é o sentimento mais estranho, ora você quer expulsá-lo de teu corpo com atitudes gentis ora com as brutas. Eu expulsei meu amor por Fatiminha com atitudes brutas.

Nós crescemos. Fátima não se tornou bonita, mas já não era tão feia. Com os artifícios da indústria de embelezamento seu cabelo não era mais um emaranhado de pêlos e suas roupas não eram mais curtas e sujas e, seu sorriso deixou de existir e eu sou o responsável pela falta do sorriso em Fatiminha.

Nós nos aproximamos. Eu a amava desde criança, mas criança não pode amar, só quando crescemos que é permitido amarmos. Antes fosse permitido viver o amor quando somos crianças, assim, sempre o expulsaríamos do peito pelas atitudes gentis, porque o homem parece ser inocente quando criança.

Nós namoramos e casamos. Eu não acreditava que tinha aquele sorriso de Fatiminha para mim. Sua irreverência contagiava todo nosso lar. Meus amigos adoravam jantar em casa porque se deliciavam com o sorriso de minha Fatiminha.

O ser humano, egoisticamente, traça sua sentença de infelicidade, pois, não aprendeu ainda que se é feliz quando todos estiverem felizes, mas como quer a felicidade só para si torna-se infeliz.

Nós não estávamos bem. Eu não poderia dividir o sorriso de minha Fatiminha com ninguém. Ele era só meu. Então resolvi arrancar os dentes dela e cortei seus lábios transversalmente para que não sorrisse mais para ninguém. No entanto, o que eu não entendia é que Fatiminha não sorria com a boca e sim com a alma. Fatiminha me castigou. Só sorria para aqueles que enxergavam o sorriso que vinha de dentro de sua alma.

Para entender que a felicidade que ela sentia não estava no exterior de seu rosto e sim no âmago, eu fiquei sem os dois. Hoje perdi a única oportunidade que tive de sorrir, que era por meio dos sorrisos de Fátima.