ESMERALDINO TERCEIRO

Joaquim entrou em casa, largou a chave do carro, a carteira, o celular sobre a mesa, tomou um copo d’água deu um beijo no filho, Pedro Henrique, de 8 anos, que passava correndo por ele na cozinha e seguiu para o quarto. Abriu o guarda-roupa, a fim de pegar uma toalha e apetrechos para tomar um banho, quando notou que faltava algo. Contudo, Joaquim não conseguia identificar o que era. Incomodado, gritou para a mulher que estava na cozinha:

- Janaina, por acaso você mexeu no meu guarda-roupa hoje?

- Eu? Não, por quê?

- Não sei, está faltando alguma coisa. Você sabe se o Pedro Henrique mexeu?

- E por que é que ele mexeria no seu guarda-roupa?

- Ora, sei lá, criança fuça em tudo.

- Sei, mas acho que ele também não mexeu não.

- Hum – Joaquim continuava a olhar para dentro do guarda-roupa. – Você não mexeu mesmo, nem hoje nem ontem; sei lá, semana passada?

- Não, querido, não mexi não.

- Sei, sei... estranho.

- Para falar a verdade, agora que você falou, a última vez que coloquei a mão no seu guarda-roupa foi ontem.

- Ontem, é? E para quê?

- Só dei uma limpada, tirei algumas tralhas antigas, que você não usa mais há anos...

Joaquim gelou.

- Janaina do céu, vai me dizer que você jogou fora o meu calção de futebol? Meu calção dos tempos em que eu era quarto-zagueiro do Esmeraldinos da Vila Maricota Futebol Clube?

- Um verdinho?

- É...

- Pois foi justamente esse...

- Minha Nossa Senhora! – Joaquim sentiu o chão faltar-lhe sob os pés.

A mulher, que se encontrava na cozinha, vem até o quarto e Joaquim a encara com um misto de tristeza, raiva e incredulidade.

- Janaina, você tem noção do que você fez? Você julga, nem que seja vagamente, a importância daquele calção?

- Olha, não, meu querido, mas eu julguei bem o tamanho dos rasgos que ele tinha nas costuras.

- Ra-rasg... Rasgos, Janaina? Que rasgos?

- Sim, senhor, rasgos. Sem falar que ele já esfarelava na bunda. O pano estava tão puído que se tornou transparente.

- Transp... Meu Deus, vou ter um treco! Vou ter um troço bem aqui, e agora. Onde está a minha bombinha pra asma? Janaina, onde... agora... está me faltando ar.

Janaina corre até a mesa da sala para pegar a bombinha enquanto Joaquim puxa o ar na iminência de ter um colapso.

- Toma, tá aqui a tua bombinha.

- O-o... Obrigado. – Joaquim agradece gaguejando e logo em seguida espreme o líquido boca adentro. Mais calmo, ele continua: - Janaina, por que você jogou fora meu calção verde, do Esmeraldino FC, sem me consultar?

- Puxa, querido, eu jamais podia imaginar que ele era tão importante assim para você.

- Importante?! Ah, Janaina, você nem imagina – Joaquim senta-se na cama, desanimado. – Vivi muitas histórias com aquele calção.

- Eu acredito, querido, mas ele estava velho, rasgado, sem elástico...

- Mas ainda vestia bem.

- Como assim, há quanto tempo você não o vestia?

- Ah, não sei, uns 15 anos.

- Pois então! Nem cabia mais em você.

- Como não cabia, Janaina? Como é que tu sabes se nunca me viu com ele.

- Ora, faça-me o favor, Joaquim José, você está com 98 kg!

- Será?

- Pois se olhe no espelho.

- Tá certo, tá certo...

- Além do mais, você tem de para de ficar guardando coisa velha, Joaquim.

- Coisa velha? Que coisa velha?

- Ora, antena quebrada de carro antigo, televisor estragado, relógio sem ponteiro. Sem contar aquele monte de caixotes de madeira que estão lá nos fundos.

- Ah, eu os estou guardando porque serão úteis quando eu me aposentar. Farei com eles trabalhos manuais para passar o tempo.

- Poupe-me, Joaquim. Duvido que isso vá acontecer e, mesmo que aconteça um dia, ainda está longe de você se aposentar. Aqueles caixotes devem, sim, é estar juntando bichos.

- Bom, não mude de assunto. O caso não é esse...

- E qual é então?

- O caso é que o meu calção tinha história, Janaina, sabe o que é isso? História! Museu não guarda coisas velhas, guarda coisas que têm história, entendeu? Ele era a minha peça de museu, a minha história.

- Hummm.

- Tem mais, não fosse isso, eu podia tê-lo guardado para o Pedro Henrique usar um dia.

- Você só pode estar de brincadeira. Aquele pano não servia nem para forrar a casinha do Guaipeca.

- O quê?! Forrar a casinha do cachorro com o Esmeraldino? Você só pode estar maluca.

- Esmeraldino? Vai me dizer agora que o calção tinha nome?

- Muito mais: tinha nome e sobrenome. Chamava-se Esmeraldino Terceiro.

- Hehe, só você mesmo, Joaquim. Isso quer dizer que tiveram um “Primeiro” e um “Segundo” também?

- Sim, sim, é claro! Venci o 1º Campeonato de Várzea Suburbana com o “Primeiro”. Durante aquela final, quebrei a perna do centroavante adversário ao dividir uma bola que, na sequência ao lance, subiu tão alto que me rendeu um leitão como prêmio. O pessoal do time disse que eu tinha regido a zaga com imponência naquele dia. Por isso dei o nome àquele calção de Dom Esmeraldino, o Grande.

- E o que foi dele?

- Nossa, nem me lembre. Foi um dia muito triste. O Guaipecão, pai do Guaipeca, arrancou ele do varal e destruiu. Chorei à beça. Por sorte eu tinha um sobressalente, guardado ainda no plástico. Usei-o no primeiro jogo do campeonato seguinte.

- E...

- E... que eu já começava a engordar naquela época, e esqueci, pelo tanto de tempo que ele ficou guardado, que o danado do calção era tamanho “P”. Em determinado momento do jogo, precisei dar um carrinho e ralei a bunda na terra... e foi-se a costura do calção embora. Talhou da cintura até às partes baixas, se é que você me entende.

- Nossa, Quinho, e você ficou de bunda de fora... hehehe, desculpa, mas deve ter sido engraçado.

- Engraçado nada, passei a maior vergonha. Tive de sair do jogo, com a mão tapando o rasgo, e correr pra casa. Mas foi uma fatalidade. Aquele calção não era tão bom quanto o seu antecessor e só durou aquele jogo. Por isso chamei-o de Esmeraldino Segundo, o Breve.

- O Breve? Hahaha, Quinho, você me mata...

- E agora você perdeu o melhor de todos. Quinze anos ao meu lado, cinco taças da várzea, três leitões, quatro tornozelos e dois joelhos adversários rompidos... Que perda irreparável.

Janaina aproximou-se de Joaquim e tentou consolá-lo, mas sem sucesso. Ele disse a ela que “estava tudo bem”, mas não havia sido sincero. Resignado, Joaquim decidiu encerrar o papo e se levantou. Pegou suas coisas no armário e foi para o banho. Quando voltou, deu boa-noite à esposa e deitou-se. Não falou mais nada e dormiu.

Janaina ficou horas acordada, sentindo-se culpada por ter jogado fora o Esmeraldino. No dia seguinte, foi a uma loja e comprou um calção novo. Todo verde (como eram seus antepassados), porém, com melhorias consideráveis. Era um calção moderno, com tecnologia antitranspirante, tecido poroso, elástico que não marcava a pele, cintura regulável, revestimento interno reforçado, espaço acolchoado para acomodar o acanhado co-piloto, ar-condicionado, airbag, GPS... tudo do bom e do melhor. Voltou para casa exultante com a surpresa que o marido teria.

Quando Joaquim chegou, Janaina na se conteve e foi logo anunciando que tinha uma surpresa. Com o presente escondido às costas, aproximou-se do marido, deu-lhe um beijo e: - Tcham-tcham-tcham! Toma, Joaquim, é para você.

Joaquim olhou para ela desconfiado, pegou o embrulho, apalpou e na hora teve a certeza: “É o Esmeraldino!”

Como um menino, que recém ganha um presente de Natal, ele rasgou o papel que escondia o presente no afã de rever seu velho calção, cuja esposa devia ter resgatado de alguma lixeira ainda não evacuada. Mas, ao dar-se conta de que aquele não era seu calção, Joaquim murchou.

- Que foi, não gostou? – Perguntou Janaina, preocupada.

- Não, querida, pelo contrário, adorei – Joaquim disfarçou o melhor que pôde.

- Ai, que bom, então vamos comer que o jantar está pronto.

Joaquim colocou o seu novo calção no armário, jantou, pegou algumas ferramentas, que sempre ficaram guardadas, e foi até os fundos da casa, passar o tempo usando as madeiras dos caixotes em algum trabalho manual.