O ESTRESSADO

Era açougueiro e ultimamente andava muito nervoso. Afinal estava mal nos negócios e a concorrência apertara. Acostumara-se a trabalhar à vontade, abater seus bois em qualquer canto de estrada, fabricar suas famosas lingüiças no fundo do quintal e vender tranqüilamente no açougue. A barrigada e o couro jogava dentro do ribeirão mesmo e pronto. Mas aí veio o órgão de vigilância sanitária para encher o saco, atendendo a denúncias de desocupados e invejosos que reclamavam do mau cheiro. As autoridades exigiram um matadouro com um mínimo de higiene. Depois veio a saúde animal pedindo registros de vacinação e todo o histórico dos animais .

---Pelo amor de Deus, hoje em dia um boi tem que ter mais documento do que gente. Assim ninguém agüenta, reclamava irritado.

Exigiram também que as carnes a serem exportadas para outros municípios fossem etiquetadas e empacotadas a vácuo. Á vácuo mesmo, de verdade, e não aquele vácuo feito com a boca aspirando na sacola, como até então fazia.

E mais registro disso, registro daquilo, e ainda tinha que guiar cada animal que era abatido. E tome imposto. Um verdadeiro absurdo.

É, a vida estava difícil. Ainda bem que tinha o futebol do domingo, sua válvula de escape. Jogava num time de veteranos de sua cidade na posição de ponta esquerda, bem aberto. Não evoluiria para o futebol moderno que havia muito não admitia mais pontas. Continua lá, bem aberto, quase em cima da linha lateral na esperança que os marcadores se esquecessem dele e assim pudesse receber uma bola açucarada para dominar e alça-la com precisão na cabeça do centro avante, ou melhor ainda, direto para as redes. Assim fazia seu grande ídolo, o ex-ponta da seleção, Eder Aleixo, que viveu seu alge na copa de 1982. Também não dava combate, não marcava o apoio do lateral adversário. Afinal já beirava os cinqüenta, estava pesadão, tinha artrose, artrite e outras moléstias próprias da idade. Além do mais o time não poderia prescindir de seu talento de colocar a bola onde queria, e precisava então guardar as energias. Neste particular se inspirava em Romário, economizar gás para decidir a partida com surpreendentes lances geniais.

Por isso estranhava sempre quando era substituído, o que acontecia invariavelmente em todos os jogos, fazendo jus à teoria de que o ponta é sempre o que sai por ser o que está mais próximo do banco. Nesses momentos ficava injuriado, saia de cara fechada, disposto a não jogar mais, disposição esta que durava no máximo até na terça-feira.

Por tudo isso, pelas constantes reclamações dos companheiros de time e pela torcida que pegava no seu pé, andava estressado também no futebol. Especialmente naquele domingo quando nada dava certo. O lateral que o marcava era bem mais jovem, abusado no futebol e debochado com o adversário. O juiz, outro folgado, estava roubando descaradamente para o time visitante. A primeira bola que recebeu não conseguiu dominar e o lateral não só ficou com a pelota como lhe aplicou o drible da vaca saindo ligeiro para o ataque. A segunda oportunidade de tocar na bola aconteceu somente uns 25 minutos depois, tempo esse em que o lateral apoiou tranqüilamente ignorando sua presença. A bola veio alta, e quando tentou subir de cabeça o marcador o impediu, segurando-lhe pela camisa e ganhou a jogada.

Reclamou com o juiz e acabou levando um pito:

--Joga bola e não reclama. Disputa normal. Na próxima te amarelo.

Não foi amarelado mas ficou vermelho de raiva. Acabou o primeiro tempo e a discussão correu solta no vestiário, ele sempre criticado e sempre se defendendo.

Veio o segundo tempo que tudo indicava seria de lascar. O sol estava mais forte, naquela parte do campo o gramado era péssimo, e o pior de tudo, era o lado da torcida. Pressentia que seria dureza.

De fato foi dureza e muito mais do que imaginava. O lateralzinho resolveu tirar sarro de sua cara com risinhos cínicos a cada lance. No limite de sua paciência começou a discutir com o oponente. O juiz advertiu os dois verbalmente e o jogo seguiu. Quando o lateral ganhou mais uma jogada não agüentou e aplicou-lhe uma falta violenta. O árbitro da partida veio correndo e meteu-lhe o cartão amarelo no peito e falou:

---Na próxima vai para o chuveiro. Fica calmo que você está muito estressadinho pro meu gosto.

Enquanto isso o lateral rolava e gemia, fazendo a maior cena.

¿Me aguarde na próxima¿, pensou o ponta.

Quando olhou para o banco o seu substituto estava se aquecendo, o que o irritou ainda mais.

¿Vou chutar o balde de uma vez. Na próxima arrebento com esse lateral e se ele falar qualquer coisa cubro na porrada¿, planejou.

No lance seguinte recebeu uma bola cumprida, e quando o lateral veio para dividir, literalmente o atropelou. O adversário olhou para a canela esfolada, fez cara de choro e falou:

---Que isso cara, pega leve, você tá muito estressado.

---O que é que você falou aí? Estressado é a p. q. p.

E cobriu o rapaz de porrada. O juiz veio correndo já com o vermelho na mão e foi recebido na porrada também. Entrou a turma do deixa disso e abafou o quebra pau. Retirado do campo resolveu seguir os conselhos dos amigos e foi para casar

Chegando em casa a mulher estranhou pois depois do jogo sempre tinha cervejada, churrasco e tal. Quando contou para o ocorrido ouviu o seguinte comentário:

---É, ultimamente tenho achado você muito estressado, talvez fosse melhor procurar um médico.

---Até você? Primeiro foi aquele juiz ladrão que me xingou desse nome e não apelei nem sei como. Depois aquele lateral moleque, e deu no que deu. E agora até dentro de minha casa perderam o respeito comigo? Assim eu não agüento.

---Calma, você precisa entender, espera que vou te mostrar.

Primeiro ela mostrou no dicionário o significado da palavra estressado. Depois leu uma matéria publicada numa revista sobre o tema, explicando as causas, os sintomas e o tratamento indicado para o estresse. Ele ouviu tudo atentamente e quando ela terminou a leitura falou:

---É, eu acho que to esse troço ai mesmo. Bateu tudo certinho comigo. Vou seguir seu conselho e procurar um médico. Mas se você me paga se contar para os outros.

---Ih, você realmente está muito estressado.

Dessa vez ele apenas a encarou feio, não disse nada e foi para o chuveiro refrescar a cabeça.

João Eduardo
Enviado por João Eduardo em 16/09/2006
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