Chifre em Cabeça de Cavalo

Adroaldo era um sujeitinho tacanho, bronco, casmurro e interiorano. Viera aos quinze anos para a capital e ainda não tinha se adaptado aos costumes e convenções urbanas. A única coisa de bom que talvez tenha feito em sua vida foi terminar o segundo grau para prestar um concurso público e passar em 53º lugar para 55 vagas.

Por incrível que isso possa parecer ele chegou a ter duas ou três namoradinhas suburbanas. Nada que tivesse durado um bom tempo. Inclusive, dizia-se pelo bairro que Adroaldo baixara o sarrafo nelas com chutes e pescoções. Era o que a vizinhança dizia. Aos trinta e dois anos parecia ter muito mais. Pensava, agia e andava como um velho. Seu cérebro embotado era de velhos. Suas idéias conservadoras e reacionárias eram de velho. Não tolerava negros, maconheiros e muito menos homossexuais. “Tudo veado esses putos” era que o sempre ele dizia. Trabalhava na repartição e ninguém se lembra de tê-lo vista faltar um dia sequer, nem por problemas de saúde. Já tinha ido para o batente com quarenta graus de febre e suando frio numa gelada manhã curitibana. Não conversava com ninguém no horário de expediente. Não que Adroaldo não conversasse. Se você trocasse duas palavras com ele e ele talvez lhe respondesse. Mas nunca esticava o assunto. Alguns diziam que ele era arrogante. Não tinha mais os pais vivos. Os irmãos tinham ficado no interior do estado e ele perdera o contato. Parentes nenhum que ele se lembrasse. Adroaldo também não davam trela para a vizinhança ávida para fofocar sobre a vida alheia. Pelo menos era isso que Aldroaldo pensava e quando pensava. Outro de seus motes preferidos era que “pensando morreu um burro”. Coisas deste nível. Que dúvida.

Todos ficaram surpresos quando ele arrumou outra namorada. Não que a menina fosse uma baranga marafona e bêbada. Muita pelo contrário. Laura era completamente o oposto dessa idéia: ruiva natural, sardas pelo colo, vinte e oito anos, lindos peitos fornidos e de bico extremamente rosados, olhos verdes de emanavam sapiência e profundidade, boca carnuda e sensual, corpo perfeito. Era formada em direito pela Universidade Federal e trabalhava no departamento jurídico de uma grande corporação o que lhe proporcionava um salário bem alto para todos os padrões brasileiros. Alegre, bonita, sensível e inteligente. Ninguém poderia imaginar o que esse “biscuit” tinha visto no tosco e ignorante Adroaldo.

Quando eram vistos de mãos dados pelas ruas da cidade - sempre com Laura parecendo beber das palavras de Adroaldo – todos ficavam boquiabertos. Os playboys pensavam: “o que esse palhaço tem que nós não temos? Grana?”. Os malucos maconheiros achavam uma aberração da natureza aquela jovem lindíssima e inteligente agarrada com um “homem de neanderthal” e os velhos estavam prontos para gastar toda sua minguada aposentadoria em Viagra para satisfazer os desejos “daquela vermelha”. Realmente era um contraste brutal.

Uma noite estava namorando em uma pizzaria mais tranqüila quando Adroaldo lhe disse repentinamente:

- Se me traíres te mato, guria.

- Que idéia fazes de mim, Aldo? Parece maluco! Não sabes que te amo? Repeliu Laura entre surpresa e até um pouco divertida.

- Olha. Abres o olho. Nunca me chifre ou já sabes. Insistiu Adroaldo.

- Claro que não, meu bem. Você é o homem que escolhi para mim e não sou mulher que trair.

- Veja lá. Veja lá.

E terminaram de jantar em silêncio. Logo depois no carro de Laura Adroaldo voltou a carga:

-Sou homem de palavra, Laurinha. Quando eu falo é batata.

-Que coisa besta, homem. Veja se sou alguma pirralha deslumbrada de Batel?!

Chegando ao portão da casa dela se despediram com um leve “selinho” e Adroaldo ainda insistiu pela última vez: “não fiques de arte comigo, sabes que sou sujeito homem”.

Laura resolveu que ele deveria ir para cama e que seu mal era apenas sono:

-Amanhã nos falamos na hora do almoço sim?

Adroaldo apenas levantou o cenho esquerdo e adentrou em sua residência.

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Quando Laura chegou a seu belo apartamento no bairro do Juvevê estava intrigada. Nunca tinha dado um motivo sequer para que Adroaldo desconfiasse de sua conduta e de seu caráter como mulher e namorada. Nunca tinha tido sequer um inocente flerte com alguém desde que começara seu relacionamento com ele. Nem mesmo quando saia de vez em quando com suas amigas solteiras do escritório nos happy hours. Sempre ligava para ele nos horários estipulados. Sempre saia com ele e dormiam um na casa do outro nos fins de semana. Sempre viajavam juntos em feriados prolongados. Sempre rachava a despesa do cinema, do restaurante, dos chopes. Isso era coisa que por alguns dias foi motivo de discórdia porque o tosco Adroaldo queria pagar tudo. Laura como a mulher moderna e atuante que era achava isso uma coisa muito antiga e careta. Logo ela que tinha dado ao seu parceiro todas as inequívocas provas de que estava com ele e apenas com ele indo contra todas as pessoas que pudesse enxergar todos os defeitos visíveis de Adroaldo. Nunca tinha dado sequer um pequeno deslize com o namorado. Laura – nessa noite – custou a dormir pensando nas palavras que ele disse no restaurante e no caminho de casa. Fez anotações mentais se algum dia ela poderia ter “pisado levemente na bola” ou cometido alguma gafe. Nada que seu cérebro tivesse registrado. Nada. Nada mesmo. Sempre fora a namorada ideal. Quem sabe Adroaldo estivesse blefando para pegar uma suposta mentira? Mas ele nunca mentira para ele. Seu relacionamento era calcado na base da confiança mutua. Era o que sempre repetia para seu parceiro. Laura rolou na cama algum tempo mais e antes de dormir ainda pensou: “Que idéia mais boba”. Adormeceu e foi acordada no dia seguinte pelo rádio relógio digital de seu criado-mudo.

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No horário marcado Laura ligou para Adroaldo em seu trabalho. Foi doce e cordial. Ele parecia amuado. Ou melhor, sua voz ao telefone parecia amuada. Ela perguntou se tinha acontecido alguma coisa. Ele tentou desconversar e veio com a mesma lenga lenga de traição da noite anterior. Uma tristeza imensa brotou do coração dela. Como já foi dito Laura tinha dado provas inequívocas de que o amava com toda a força de seu ser. Ele continuava martelando a mesma tecla de que se “fosse corneado, o bicho iria pegar”. Ela já estava ficando chateada com essas insinuações de Aldroaldo. Não era um cara que ficasse o tempo todo de “pegação no pé” & “marcação cerrada” que ele quereria como namorado. Ela queria um homem que confiasse nela. Afinal, era uma moça fiel. Resolveu então marcar um encontro para depois do expediente de ambos para conversarem num lugar discreto.

As seis em ponto Laura sentava-se à mesa de um barzinho escuro onde tocava jazz como musica ambiente. Pediu um uísque soer e uma porção de pistaches para o garçom com pinta de ator de fita policial norte americano. Adroaldo chegou junto com o drinque e deu um olhar reprovador para o garçom. Sentou e pediu cerveja. Óbvio, que pediu cerveja.

Ela tentou iniciar uma conversa civilizada com o namorado. Parecia impossível. Adroaldo só falava em traição e de o que poderia acontecer com ela se ela ousasse chifrá-lo ou trocá-lo por outro. Demorou quarenta e cinco minutos contados no relógio para que ninguém chegasse a nenhuma conclusão lúcida ou adulta. Adroaldo só falava nisso como se a agulha tivesse enroscado no risco do disco de vinil. “Traição”. “Se traíres, viste”, e toda essa baboseira incoerente e sem sentido. Ela tentou contra argumentar dizendo que sempre lhe dera provas cabais de seu amor e dedicação. Ele parecia não ouvir nada além de suas próprias palavras. Uma hora depois dessa discussão vazia Laura estava exasperada. Com muito tato disse-lhe que talvez eles pudessem “dar um tempo para repensar a relação”. Prá que? Foi a gota d’água que faltava para Adroaldo dizer que seus pensamentos e desconfianças estava corretas. Que se fosse para dar tempo de alguma coisa era definitivo. Nesses termos. Arrasada Laura terminou o namoro naquele exato instante. Ela iria sofrer, porém iria superar, era o que sua alma lhe falava naquele momento. Estava tudo acabado então. Laura levantou-se, pegou sua bolsa, jogou um “mico leão dourado” de vinte pratas na mesa e se foi. Adroaldo dirigiu-lhe pesadas ofensas enquanto ela se afastava para sair de uma vez por todas daquele bar. Tudo estava acabado e depois dos xingamentos do agora ex-namorada para a bela de doce Laura era caminho sem volta.

Chegou em casa com uma vontade de chorar engasgada no peito e logo que sentou em seu sofá preferido as lágrimas e os soluços desandaram por seu rosto. Chorava como uma criança que se perdeu dos pais num shopping center lotado. Seu coração estava pesado. Sua mente um turbilhão. Aquele filho da puta realmente não sabia distinguir uma mulher decente quando conseguia uma. Era a lógica de Laura. Talvez ela estivesse certa. Talvez fosse uma coisa passageira e talvez ainda pudessem ser amigos um dia. Talvez. Ela dormiu mal mais uma noite.

No dia seguinte não ligou para Adroaldo. Nem no seguinte. Nem no seguinte. Nem nunca mais. E ele também não. Parecia que tinha sumido do mapa. Nenhuma chamada telefônica. Nenhuma mensagem. Nenhum sinal de vida. Tudo acabado por uma desconfiança banal e sem sentido. Ela nunca lhe dera um motivo sequer para essa atitude. Inclusive achou que era uma desculpa dela para lhe dar um pé na bunda. Podia ser que fosse isso mesmo.

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Laura tocava sua vida. Parecia melhor depois de rompera o namoro. Quatro meses depois ainda não tinha saído com nenhum cara. Não que não quisesse. Mas tinha coisas mais importantes para resolver. Assinava excelentes contratos no trabalho e seus honorários advocatícios engordavam a olhos vistos. Sempre se vestiu bem e com elegância. Agora se vestia cada dia melhor. Comia saudavelmente e tinha perdido peso ficando ainda mais atraente. Resolveu fazer pós graduação. Resolveu trocar de carro. Resolveu guardar dinheiro para fazer uma viagem ao México. E um dia resolveu sair mais cedo do escritório e curtir um pouco o raro dia de sol na cidade.

Passeando distraidamente pelo centro decidiu tomar um chope bem gelado e comer aquele lendário cachorro quente da rua XV. Sentou e foi logo servida. Quando sorvia o primeiro gole ela reparou num homem que a olhava e sorria. Ele devia ter seus quarenta anos, cabelos na altura dos ombros, os olhos castanhos baixos e uns noventa quilos bem proporcionados em seu metro de oitenta e cinco. Claro que ela estava paquerando! Pediu um chope para mesmo garçom que a tinha atendido e caminhou a passos firmes de decididos até a mesa na calçada onde Laura estava.

- Posso sentar-me com você. Disse.

Ela apontou para a cadeira e ele sentou-se. Começaram a conversar imediatamente. Meia hora depois já pareciam amigos de infância. Duas horas depois rumavam para um motel no Largo da Ordem no carro dele. Quatro horas depois já estava marcando um encontro para dali dois dias. Dois dias depois se encontraram e de divertiram numa casa noturna onde tocava a banda de alguns amigos deles. Ela adorou conhecer essas pessoas espirituosas, engraçadas e mordazes. Ele introduzia Laura num mundo diferente e delirante de grande programas a dois. Vale salientar que o nome do novo namorado de Laura era João Pedro, mas conhecido no meio musical e empresarial com Pedro Loco. Apresentou a ela os baseados mais poderosos e os haxixes mais requisitados. Os melhores uísques. Os melhores vinhos e as melhores viagens nos melhores hotéis. Tudo parecia um belo pedaço de paraíso para os dois. O sexo era sempre maravilhoso e todas as fantasias permitidas e realizáveis. A conversa entre os dois era fluída e ouso dizer até mesmo que fosse algo espiritual. Ela continuava trabalhando e ganhando uma causa atrás da outra. Ele começava a agendar grandes concertos com atrações internacionais. A vida a dois era agradável e não havia divergências, ciúmes, palavras ríspidas ou qualquer outro tipo de desrespeito que fomenta as relações dos casais nos dias de hoje. Seis meses depois , quando ele fechou um contrato com uma banda gringa de primeira magnitude que viria fazer uma apresentação na cidade e que sua porcentagem era astronômica, resolveram se casar em uma cerimônia hippie em uma chácara de propriedade de um amigo de Pedro Loco. Apenas cem pessoas. As mais chegadas, poderia se dizer. Laura estava numa felicidade que parecia não caber em seu coração. Pedro se dedicava cada vez mais aos negócios para poder proporcionar à sua futura esposa uma vida digna. Nada poderia dar errado.

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Três dias antes do casamento entre Laura e Pedro, ela encontrou casualmente com Adroaldo. Ela o viu e foi cumprimentá-lo. Não tinha nada contra ele. Absolutamente. Era uma praça movimentada no coração das “Araucárias”. Próxima ao marco zero aqui da província. Ônibus e transeuntes por todos os lados. A Polícia Militar e os “Smurfs” da Guarda Municipal faziam e ronda e principalmente comiam pastéis gordurosos das imundas lanchonetes de coreanos que empesteavam a região. Laura foi sorrindo até Adroaldo. Desde o rompimento não tinham trocado nenhuma palavra. Silencio da parte de ambos. Ela adiantou-se para saudá-lo. E foi em sua direção. Ela parou em sua frente. Ele três passos atrasado sacou alguma coisa do bolso interno do paletó surrado. Ele parecia mais envelhecido e enlouquecido do que da ultima vez que Laura o tinha visto. Adroaldo puxou o gatinho quatro vezes. O primeiro tiro acertou a cabeça de Laura. O segundo o peito. O terceiro o ombro direito e o quarto o seu abdômen. Laura já estava morta quando o primeiro disparo a atingiu. Os outros foram por desfrute de Adroaldo. A multidão quando ouviu os estampidos fugiu espavorida salvo meia dúzia de punks com seus moicanos e roupas rasgadas que fumavam a alguns metros da cena do crime e que incitavam a multidão a um linchamento público. Dessa vez a PM agiu rápido, algemando Adroaldo. Um tira negro, forte e alto parecidíssimo com o Forest Whitaker ainda tentou argumentar:

-Porque você fez isso, cara? Tá maluco! Matou a moça!

Ao que o calmo Adroaldo lhe respondeu:

- Crivei essa filha da puta vagabunda de bala para ela ver que eu sou cabra de palavra. Mandei ela não me cornear. Eu não sou chifrudo de ninguém seu moço...

Já na delegacia Adroaldo foi colocado no pau de arara e espancado como um cachorro de rua. Apanhou como gente grande. Assinou uma confissão de homicídio doloso e com certeza iria para júri popular onde seria condenado a pena máxima.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 24/08/2010
Código do texto: T2456911
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