A CHAVE DO LIVRO

Conversando com meu filho, ele me falava que o problema em ler um livro de muitas páginas é que só conseguiria terminá-lo após muito tempo, ano ou meses. É claro que cada um de nós tem um ritmo de leitura, além do que existem temas que nos motivam, nos envolvem, mais ou menos, influenciando e muito no nosso ritmo em cada leitura. Foi então que lhe contei uma história, não sei quem a criou, e que para mim é absolutamente verdadeira.

É que cada livro tem, dentro de si, um mundo, ou um pedaço dele, ali, guardadinho feito um tesouro dentro de um baú (não consigo entender por que tem gente ainda querendo inventar uma máquina do tempo, há tanto já inventada, desde o primeiro livro). O mais peculiar e espetacular é que esse baú pode ser aberto por qualquer homem, porém cada um de nós precisa aprender a construir sua chave. Eu mesmo, percebi ainda adolescente, que para mim até a página trinta estava no quintal, ou na varanda do livro e, se até a trigésima página não tivesse conseguido abri-lo, escancará-lo ao mundo (de fora dele, de dentro de mim), provavelmente não o leria até o fim, por isso mesmo passei a rubricar meus livros na página trinta, página-porta – ao ultrapassá-la teria aberto o seu mundo, acessado o seu tesouro.

Quando abrimos um livro, levamos nossa luz até ele, o iluminamos, e aquecemos e alimentamos seus personagens e suas vidas, os convidamos para transporem aquelas folhas, aquelas páginas, aquelas tintas, aqueles sinais, e virem conosco, partilharem um pouco do nosso mundo, de nossas vidas. Ao abrirmos um livro passamos a ser responsáveis, em boa parte, por tudo que até então estava ali dentro, quietinho, adormecido. Os lugares, as situações, os personagens, tudo irrompe dali e ganha o nosso mundo. Eu mesmo, por quantas vezes, enquanto estou trabalhando ou dirigindo, ou me alimentando, ou conversando com alguém, por exemplo, me deparo com algum personagem de um livro que estou a ler, ali do meu lado, me ou nos observando, fazendo alguma cara ou expressão, ou até mesmo algum comentário. Tem uns, mais descolados, que somem quase o dia inteiro, por vezes me deixando aflito, preocupado com o quê ou por onde anda; tem os mais quietos, parecendo adormecidos, esses precisam que os toque, os acaricie, de alguma forma, para darem o seu ar de vida; e os enigmáticos, e os perversos, os sedutores, os confusos, os sábios, os perspicazes, os apaixonados, e por aí afora.

E eu falei para o meu filho dos dois grandes motivos, para mim, de ler um livro até o seu fim, e o quanto antes: primeiro, a vontade danada de conhecer até o fim, todo aquele tesouro; segundo, porém não menos importante, pelo meu medo de, ao demorar muito com o livro aberto, deixar que os personagens se percam pela vida afora, virem personagens errantes tentando encontrar seu caminho de volta, perdidos nas estradas das vidas: talvez nas escolas, nas bibliotecas, em poucas casas, esborroando nas mentes que passam, em vão, feito andarilhos que sempre encontramos à beira das auto-estradas.

Para que uma história e seus personagens continue viva em um livro é preciso que a gente, leitor, saiba cuidar dela, tanto ou mais do que quem a escreveu pela primeira vez, é preciso que a gente a trate como nossa melhor visita, nosso melhor amigo, a receba na melhor sala, sirva do nosso melhor vinho, a leve para conversar na cozinha e a alimente bem e, se for muito tarde, arrume para ela um bom quarto para descansar.

Se a história e seus personagens for por nós bem tratada, voltará inteira, renovada, para dentro do livro quando o fecharmos, e certamente de lá sairá infinitas vezes, enquanto houver homens cuidando bem dela.

Sorrindo ambos, meu filho comentou que essa minha doidice era muito mais antiga do que ele imaginava, no que concordei.