A CANCELA

A CANCELA (Na visão de Assis)

Levantei-me devagar, peguei balde, corda, fui até o curral. O bezerro apojou, retirei o leite de carimã e sai direção a cozinha. Depois fui até a velha cerca de pedra, subi o morro grande e disparei atrás de algumas cabras pelo riacho da melancia. Algumas correram para os lados do umbuzeiro, do Copa Alta( diziam que é o defensor das matas).

Ao retornar a casa girava de ponta a cabeça. E as pessoas eram monstros horripilantes. Tentava me esconder, queria fechar os olhos para não ver-lhes as feições medonhas. Mas os sentidos não me correspondiam. As vozes que me acercavam eram ordens que não ousava contestar. Cabeças de boi, esqueleto de jumento, facões afiados, enormes marretas, homens quebrando pedra, labaredas de fogo coziam meu corpo. Tudo em minha cabeça, tudo ao meu redor era uma loucura, como um sonho. Estava tresvariando.

Contemplava uma trilha cortando a caatinga, uma estrada sem fim. Os meus olhos flamejavam e minha língua como uma lâmina de facão afiado transpassava as minhas bochechas, as orelhas eram como dois jatobás. Do riacho do moleque a Serra do boi morto já pertinho de Salgueiro o riacho de pedras que rolavam sem parar atropelando a música do chocalho da serpente, muitas serpentes ameaçadoras.

Diante da cancela de meus olhos, o coqueiro cuja copa deixava pender cinco folhas secas. Uma boca que fala abafado como se estivesse engasgada e tinha longos braços, enormes. Em uma das mãos trazia um chicote enorme de couro crú. O Nariz como uma chaminé e soltava baforadas como chaminé de usina e cobria tudo como uma névoa de fumaça. O chão estremece quando pisa. É como se estivesse martelando minha cabeça. É o Messias, não o esperado de Nazaré, mas, o ofegante, o curioso que adentra com seu enorme chapéu de palha, pitando o seu cachimbo de barro.

Olho da boca do túnel, girando em aspiral muitas serpentes ameaçadoras por todos os lados. Corro até a luz branca como a neve no final do túnel. À porteira uma pessoa de branco me ampara em seus braços. Daí um longo silêncio, depois ouço choro, muito choro. A agonia, não era a minha agonia, mas de alguém preocupado comigo. As rezadeiras entoam suas rezas cada vez mais altas e se misturavam ao barulho dos guizos, muitos guizos.

Tenho péssimas recordações de minha infância. A cancela velha, de paus tortos de pereiro. Uma tramela que não tranca. Vejo o jumento cardão roçar a queixada e escancarar a porteira deixando passar a manada inteira. O chocalho das cabras, o guizo da cascavel entre as pedras do morro das caeiras. Em uma tarde de sol, enquanto arrebanhava cabras, fui pegar um cabrito entre a moita. Num bote certeiro a serpente inoculou-me a peçonha mortal. Corri, corri, corri até onde minhas forças permitiram na cancela, tentando abrir tramela, cai espichado,a cabeça girava, o corpo ardia qual coivara de aplaha de arroz.

Todo de branco, exclamou o velho Zuza. O que é isso menino!

Os olhos vermelhos, a poeira, as feridas. Levantei a cabeça. Olhar fixo, duas faíscas. Eu segurava o bicho nas mãos feito nó.

Olhavam admirados os corpos. O rajado sem vida não tinha quem me tirasse da mão. Olhar de serpente. Acima da panturrilha, dois furos. Eu fora posto numa esteira no meio da sala. A serpente cortada em pedaços foi atirada próximo ao curral.

Não falava, apenas remexia o corpo de um lado para o outro, ensangüentando a alma, as lágrimas, o lençol. Entravam e saiam da cozinha com água morna e chás aromáticos. Na cancela, jogavam cinzas, água de sal com alho. Muito alho em todas as direções.

Mandaram avisar Tia Eulália, Tia Lourença e Tio Romarco preto. Chamaram todas as rezadeiras e benzedeiras. Em um instante a casa encheu de gente. Alguns vinham de longe e nem sabiam do que se tratava. Somente que alguém adoecera e estava mal. Uns perguntavam: — Foi o boi que chifrou?

E antes que respondessem diziam: — Devemos matar logo esse touro. Todos queriam fazer alguma coisa para ajudar. Foram orientados a saír a procura das ervas e raízes para o serviço das rezadeiras. Tiras de couro de veado bem apertado. Em cima do local da picada uma infusão. Ungüento de cabeça de nego, casca de angico, babosa, quebra-faca, raízes de espinheiros, coroa de frade e jenipapo. Muita reza, ladainhas dia e noite. Depois de quinze dias chamaram os penitentes de Sr Monoel Carpina, que arriaram o cruzeiro num canto da salae afinaram a voz num bendito de arrepiar, para encomendar meu corpo. Qualquer mortal cairia na cilada, diziam. Outros riam do fato, de na raiva a vítima tomar nas mãos o bicho peçonhento, dando-lhe um nó. Todos estavam rindo de mim e do nó. Cabra danado de doido. Qual nada vivo imune. Diziam. Agora correm dele! Olhar hipnótico, ouvidos mouco aos guizos. Com ele agora é assim. Pega por debaixo da cabeça arranca com força, dá um nó apertado e leva como prova a peçonhenta. Assim me conhecem como Assis, o coxo, filho de Ananias, o pescador que pega cobra e dá um nó. Transcorria idos de 1958,

NATINHO SILVA
Enviado por NATINHO SILVA em 31/08/2010
Reeditado em 29/08/2011
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