O BOI DA CARA PRETA

O Boi da Cara Preta

Não é estranho! Sempre quis contar, mas contar como? Meu velho pai não mudou com anos. Continuava com o olhar sereno, olhar de vaqueiro, que sabia exatamente onde estava o boi da cara preta. Olhava por entre a caatinga bravia, onde ninguém poderia imaginar entrar, e lá vinham quebrando tudo pela frente o boi da cara preta e os vaqueiros. Na frente o exímio Licínio Lustosa já quase a alcançar touroe e imediatamente atrás o vaqueiro Abdias. Porém como um fantasma o boi da cara preta desaparecia como uma visagem. Depois de longa e dolorosa correria por entre espinheiros, macambira e quebra-faca, faxeiro, baraúnas e caatingueiras, Lá estavam os dois traçando trilhas em meio a caatinga cerrada. Novos planos poderiam ser traçados para se tentar dominar o fantasma.

O velho vaqueiro Abdias a despeito da lide, e da rusticidade da vida que levava, sabia apreciar as coisas boas da vida. Era homem desapegado do orgulho, transbordava honesta sabedoria e confiança.

Era o meu rei, o meu herói, o meu modelo. Sim senhor o mais destemido e hábil vaqueiro daquelas cercanias e tinha admirável respeito pelo touro o qual perseguia.

Eu costumava vestir suas perneiras e gibão, ficava sumido dentro da couraça e isso me transmitia desejo e sonhos de desbravar aquela caatinga.

Às vezes, botava também seu chapéu de couro que pesava sobre minha pequena cabeça. Outras vezes, me colocava sobre seus joelhos que fazia pular como se fora um cavalo bravo, e corcoveava para a direita e para esquerda, dizendo: seguro, vaqueiro. Vaqueiro bom não cai!

Era analfabeto, mas parecia um doutor, tal sabedoria nata que possuía e suas decisões eram sábias. Cortês educado e divinamente instruído em espírito e no temor a Deus, "que é o princípio de sabedoria e prudência” (Sal.111:10). Não costumava faltar às novenas da igreja católica aos finais de ano.

Meus quinze irmãos brincavam soltos pelas areias do riacho da melancia, e por entre os arbustos da Baixa Grande. Sobre as pedras do morro grande (morro grande era um enorme rochedo que tinha na fazenda). Os meninos faziam boiadas com os ossinhos de pés de ovelhas e as meninas, lindas bonecas de sabugo de milho e de flor de mandacaru. Brincavam de pega-pega entre a catingueira e, às vezes correndo em volta da casa até a olaria do tio Sintô que ficava no alto da copa alta.

Além das brincadeiras que tios e pais faziam com a gente, ensinando montar jumento, plantar sementes, nadar no Velho Chico e remar até ilha de Canabrava na canoa do tio Ananias. Mesmo nesses momentos de brincadeira, destacavam-se dentre outras muitas lições de respeito e honestidade, camaradagem e boa vizinhança.

Quando nos levavam para a cidade durante as festas de final de ano, ficávamos admirados com tanta gente, homens jogando explandir, roletas e cartas, tomado cachaça e outros dançando, as mulheres tomando gegibarra e olhando novidades. Quando proximadamente no ano de 1955, partimos para ir morar na fazenda Canabrava já nas terras do vaqueiro Abdias.

A melhor brincadeira era quando em noites de lua cheia todos participavam juntos com a criançada, de roda, e de ciranda. Convidados a vizinhança, os mais idosos assentados em esteiras, bancos de caraíba e pedras de amolar e pisar fumo. Até altas horas brincavam e assistiam as inocentes brincadeiras. Também contavam causos de pescaria ou boa vaquejada as mulheres mais idosas falavam de bordados, comidase e rezas. As melhores histórias vinham do Tio Sintô, Sr Eliseu e Zuza.

Quando se chegava próximo ao engenho do Sr. Deoclécio existia um abismo enorme e a criançada tínha muito medo de passar por lá, as águas eram de um verde escuro. Lá estava Daniel de Norbertina, a nos socorrer e a ajudar transpor aquele inferno verde. Era bem pretinho, brilhando ao sol, correndo apressado nos retirava dali afastando-nos para bem longe dizendo: tem ai dentro dessas águas escuras um bicho do casco duro que ataca as pessoas, e muitas crianças já foram devoradas por ele. Depois ficamos sabendo que era, um enorme jacaré fêmea do papo amarelo que estava chôco se tornava agressivo para defender sua ninhada.

Estendiam-se pelo vale da baixa grande, os riachos da favela que saia lá do alto do cruzeiro da tia Lourença, e o riacho da catingueira, que saia do alto da casa de Sr e Zuza. Durante as trovoadas, esperança de boa colheita e fartura. Suas águas corriam passavam frente nossa casa e casa de Ananias, indo desaguar no açude grande. À noitinha, a sinfonia dos pardais e andorinhas, animais noturnos e pirilampos completava embelezando o anoitecer e embalavam o sono de todos nós e também do velho vaqueiro. Pela manhã íamos soltar barquinhos de casca da vagem de caraíba, casca de jatobá e casca da boneca do cacho de bananas.

Lá da varanda da velha casa de taipa o vaqueiro Abdias contemplava o vigor da plantação as margens do açude grande, arroz de um lado,adinate feijão milho, melancia, abóbora,mandioca, bananeirase etc...

Adormeceu e o tempo foi passando, os tempos se foram e ervas daninhas cresceram naquelas terra outrora cultivadas e regadas a suor. Abdias, aquele que não adormecera rebusca às lembranças, percorre o espelho das águas revira as margens, norteia as caatingas e trilhas de seu cérebro e trás à sua memória. Muito longe, ainda ouve-se, avista-se o tropel o quebrar de mato seco, é o boi da cara preta, boi bravo que assombrava qualquer um, e que vaqueiro algum ousava pegá-lo. Por entre as macambiras o velho vaqueiro Abdias, em seu cavalo tordilho num só vulto homem e cavalo, como se fossem fundidos num só corpo perseguindo o bicho bravo. Aquela visagem como uma sombra da escuridão por debaixo da caatinga fechada continuavam perseguida. O velho Licínio que ia a frente em disputada disparada ao passar na rala da caatinga, avistou e passou por cima de um tatu e desconcertou-se perdeu chance de derrubar o touro. Mas o velho vaqueiro Abdias, numa manobra espetacular agarrando-o pelo sedém levou-o ao chão imobilizando-o.

Ainda estavam descansando da lida quando Licínio diz, compadre Abdias, hoje eu perdi duas vezes. O touro e tatu que na clareira passei por cima. O amigo então enfiando sua mão no bornal retira o enorme tatu e pergunta teria sido este, compadre Licínio. Ambos riem da façanha,pois se conhecem e sabem de que são capazes.

Hoje, longe no tempo adormecidos na capela do cemitério de Belém sua cidade, restam apenas as lembranças registradas.

Porém, a inspiração daquele de mesmo nome que não adormeceu labuta a terra, fala para gerações futuras de suas lembranças e recordações. Atestadas pelo velho gibão pendurado num gancho do alpendre da velha casa de taipa da fazenda Baixa Grande, as façanhas do vaqueiro Abdias.

RAIMUNDO NONATO DA SILVA (NATINHO) 1997

NATINHO SILVA
Enviado por NATINHO SILVA em 31/08/2010
Reeditado em 08/10/2015
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