A BATATA ASSADA

A BATATA ASSADA

Acabou-se colheita da mandioca e o terreno estava preparado para o plantio da batata doce, do feijão de arranca e do milho. Todas as sementes se encontravam a disposição, exceto a ramagem da batata doce, cujo plantio é feito através de muda de ramos. Seu Abdias, já havia encomendado a um amigo na cidade de Barra de Tarrachil, distante seis quilômetros. Não podiam se demorar tanto para que as mudas não murchassem.

Um dia arrumaram os preparativos para saírem de manhã bem cedo, aproveitando-se da madrugada, para que antes do sol abrir o olho pudessem está de volta com as mudas.

Na noite anterior, todos prepararam suas merendas para não atrasarem a saída e foram dormir cedo. O Ildefonso, cujo apelido era “Defonsinho” moleque de treze quatorzes anos de idade, dentre os doze filhos que se achavam presentes. Era considerado desconfiado, costumava ter sonhos horríveis com touro, jacarés, cobras e lagartos. Certa feita quando foi arrebanhar cabras no alto do moleque, deparou-se com enorme cascavel cujo chocalho dava badaladas como se fosse o sino da igrejinha velha. Não tendo tempo para saltar fora, lascou o facão na bicha decepando-lhe a cabeça. Passou três semanas sem dormir, porque acreditava que cortando a cabeça de uma cobra, sua cabeça o iria perseguir dia e noite até inocular a peçonha mortal. Razão porque não estava nada disposto a ir naquela empreitada durante a madrugada de junho. Porém, por ser um dos mais velhos foi obrigado e também preparou sua merenda com todo carinho. Apanhou uma enorme batata doce das mais belas, assou-a nas cinzas do fogão a lenha até ficar crocante. Depois a embrulhou num papel grosso, meteu-a num saco de estopa e escondeu-a entre o telhado e parede-meia do quarto da dispensa.

Os meninos e as meninas que não iriam naquela jornada, pensaram logo em fazer uma brincadeira de mau gosto, pregar uma peça no desconfiado. Quando o ele foi se deitar para tentar adormecer, a Tinesa e o Natinho, disfarçando dos demais irmãos, bolaram e puseram em prática a tática para encafifá-lo.Sem que os demais percebessem começaram já a ofensiva: diziam ambos em voz sussurrante como se fosse segredo, mas que dava muito bem para ser ouvida pelo encafifado:

- Olha pessoal! Eu vi, aonde ele escondeu sua batata assada!

Vamos pegá-la e comer!

Assim repetiram varias vezes para ter certeza de que o mesmo ouvira e aguardaram para ver sua reação. Qual nada! Nada de novidade, Mas sabiam que ele estava ouvindo tudo.

O mesmo tendo ouvido muito bem a façanha, não esboçou nehuma reação de desconfiança como era de costume.

Lá fora o Rex latia, a coruja piava e o sapo roqueijava e todos caíram em profundo sono.

Durante a madrugada, Abdias chama cautelosamente a equipe, com todo o cuidado para não acordar os demais. O último a ser chamado por ser rapazola ainda de calças curtas, foi o desconfiado Delfonsinho. Ao acordar foi logo dizendo: sonhei com um lindo plantio de batatas. Naquele instante já se ouvia o tropel, algum vaqueiro batendo o binga para acender o cigarro de fumo, enquanto outros já se encontravam montados em seus animais. Ouvia-se o barulho da tropilha, notava-se que todos já se encontravam atilados em posição de partir.

Para não atrasar, começaram a pressionar.

- Vamos Delfisinho! Você está atrasando todo mundo! Mexa-se, venha logo o seu jegue já está encilhado!

De repente, um choro. Inconsolável choro do Delfonsinho, que não encontrou o seu lanche, onde o havia escondido. Agora mais do que nunca reforçava de vez o porquê de não querer ir à empreitada.

Tentaram convencê-lo de que uma batata não era tão importante assim, que iriam dividir as suas merendas com ele. Mas não houve jeito, estava arrasado e se mexia de um lado para outro, olhava em cima em baixo e olhava atrás da porta debaixo do banco, atrás da pilha sacos de farinha e nada. O mesmo só queria um motivo como esse, para não ir, agora estava ali um prato cheio. Decidido a não deixá-lo, seu Abdias desceu do seu cavalo pronto a dançar a quizomba. Com o três pés na mão direita, se informou do ocorrido, perguntando baixinho:

_ Delfonsinho meu filho!

De repente engrossou a voz.

_ Seu filho de uma égua, fale depressa antes que lhe passe a toalha nos lombos! O que é que está acontecendo, seu cabra safado.

O restante da casa adormecia tranquilamente sem se dar conta de que lá pelos fundos a temperatura da batata estava a mais de cem graus.

Respondeu o choroso com medo de levar uma toalha (relho) nos lombos:

_ Eles papai! Eles,paizinho! Eles pegaram a minha batata! A Tinesa o Natinho juntos, disserem que iam comer a minha batatinha tão bonita, branquinha e assadinha crocante, nas cinzas do fogão a lenha, Papai!

E as lágrimas jorravam pelas suas faces, como o as águas do Pajeú, durante as trovoadas de final de ano.

Até o duro vaqueiro por instante pareceu comovido, mas logo foi acordando um a um dos que ainda dormiam sossegados, em suas redes e esteiras. Encheu a enorme cozinha de meninos e meninas assustados, naquela terrível madrugada da linda batata assada.

Começou o interrogatório. Um a um, aqueles inocentes com os olhos de sono ainda remelentos, procuravam arregalá-los o mais que podiam e não os desviavam da toalha (o relho).

Surpreendentemente, Tinesa e Natinho pasmos, se perguntavam em seus botões:

_ "Quem terá comido a batata! Será que foi Natinho, para botar culpa em mim?

_ Terá sido a Tinesa, que negrinha esperta quer me culpar!

Pensando assim, continuaram silentes.

Nenhum dos demais sabia do que se estavam falando, nem o que estava acontecendo aquela hora da madrugada. Porém todos sabiam de uma coisa, que o pai muito católico, acreditava muito nos santos e caso a coisa apertasse, ficasse feia de verdade, era só chamar por algum santo e o velho havia de amolecer. Pois o mesmo muito católico bastava ver qualquer imagem de barbudo, e quanto maior a barba mais poderoso, pensava logo que era um santo milagroso.

Falando baixinho, para evitar um escândalo prosegue interpelando, um a um:

- Tinesinha minha filha! seu irmão vai trabalhar a essa hora da madrugada. Foi você quem comeu a bata assada do Delfonsinho?

Respondeu o mais rápido possível pressentindo o perigo, pareceu ensaiada.

_ Não Papaizinho, não foi eu! eu juro por São Benedito todo pretinho, que não fui eu! Só se foi o Natinho!

Seu Bida virando-se, deu uma cruel chicotada no Natinho,shelept, shelept, shelept! o mesmo se encontrava distraído, e esperneando, contorcendo-se todo, chamou:

_ valei-me São Gerônimo, da ovelinha nos braços! E de imediato disse não foi eu paizinho! Não foi eu! só se foi a Tinesinha.

Daí voltando-se-se outra vez para Tinesa.

Não fez mais pergunta, deu-lhe logo uma tremenda toalhada shelept, shelept, shelep.

Para quem estava assistindo, tudo era bastante cômico, porém ali só meninos sabia da temperatura da batata.

Seu Ananias que adorava ver os moleques apanhando dava risada, os demais ficavam calados.

Depois da cintada veio a pergunta.

_ E agora dona Tinesa como é que fica, foi ou não foi sá dona.

Ela de imediato apontou o encolhido,o Pereirinha que sempre ficava encolhido cheirando a ponta de um lençol.

shelept, shelept, shelep.

A coitado nem teve tempo de responder já havia levado por antecipação, para não dar tempo a chamar por nenhum santo.

Este também foi logo direto aos conformes e só esticou o braço apontando outro irmão que ainda não tinha levado.

A Ritinha por sua vez, vendo o que a aguardava, revirando os olhos rezava para todos os santos: Valei-me, tia Bárbara, Santa Luzia, e Nossa Senhora Aparecida, Santo Antônio dos cabritinhos ... Sabe-se lá que santos mais inventados. Ela era mesmo campeã de inventar santos. Surgiu até um tal de São Cabresto de amarrar jegue. O velho Abdias muito superticioso que era, pesou-lhe a consciência, deu uma pausa pensativo, e antes de fazer a escraxante pergunta, pensou alto:

_ Será, que existe mesmo esse tal são cabresto! Nunca ouvi falar nesse santo!

E perguntou:

- compadre Zuza, esse santo existe? Zuza, ficou na dúvida também, era outro que temia os santos e disse:

- Ora, compadre! deve existir e os santos sempre atendem as crianças. E tem mais, deve ser muito milagroso não viu como ela chamou com tanta convicção e! Se eu fosse o sinhô nem ousava levantar a mão para não secar o braço.

E ela começou logo a gaguejar, e resmungava entridentes como se tivesse orando.

Sá, Sá, Chi, chi, Popá, Papá eu, eu, eu, eu, eu, jujujuro ... Eu, Eu! O santo já havia me prevenido dessas mazelas, eu sabia.

E não levou a chicotada.

Todos pensaram. "O santo fez milagre mesmo, e protegeu mesmo". Agora estava aberta uma brecha, era só chamar o mesmo santo, ou outro santo qualquer desconhecido porém milagroso.

Virando-se com a rapidez de Rompinu (rompinu era um cachorro ágil e valente), antes que desse tempo de alguém chamar um santo qualquer desconhecido. Desceu o três pés no lombo da Ana Maria, que não tendo tempo de falar, também esticou o braço e apontou o suposto papabatatas. Dessa vez não tinha jeito alguém ia assumir a culpa sem nada dever. Também pudera, eram todos inocentes. A coitada levou sua chicotada esqueceu-se até de abaixar o braço que continuava apontado, parecia engessado, mas queria mesmo era por um final naquela ciranda.

Quem seria esse próximo. Onde estaria o próximo, parecia invisivel.

Só sabia a arte do drama e agora mais do que nunca precisava aplicar tais conheimentos nato. Qualquer que o olhasse não ousaria imaginar que fosse levar uma sova, aquele ente que parecia moribundo, um farrapo humano. Tal semblante deplorável de miséria e fraqueza, parecia um lastimável doente crônico, aleijado, morto vivo,seus olhos estavam no além, pareciam enxergar a alma o universo. Porém só ele sabia o inferno que poderia cair sobre ele em instantes, se não fosse perito na arte da dramaturgia. Somente sua mãe seria capaz de o interpretá-lo, e mesmo assim se ele confirmasse que não era seu filho ela teria sérias dúvidas.

Era mais o mais sabido do que qualquer daqueles que já havia apanhado, naquela madrugada da batata assada. Nenhum dos presentes tinha certeza quem seria o verdadeiro culpado. Conheciam as artimanhas de meninos, porém ali estava um caso para o sábio Salomão. Somente um, o tio Sintô sempre muito complascente, pedia para que parasse, suspendesse a fubeca.

_ Compadre para com isso, esses meninos são bonzinhos e não merecem isso!

Agaxado num canto daquela enorme cozinha, quase assentado sobre um pilão de pedra de pilar fumo, com todo o semblante de acordo com o descrito anteriormente, inspirava cuidado urgente. Estava o Jeoaquim apelidado de (Seu Quincas). O menino parecia um farrapo humano, bastaria um sopro seria levado pelo vento, como palha para as nuvens do céu, ou quem sabe uma outra galáxia. Seus olhos, nem lágrimas tinham, isso seria pesado de mais. Seus joelhos trêmulos era aquela bola de osso. As clavículas pareciam cabide de pendurar preá.

Mesmo assim, não foi poupado ao interrogatório para não ser injusto com demais. Bastaria, contudo, saber onde pegar naquele traste. Era puro osso, só a cabeça que era privilegiada e se destacava do resto do corpo.Parecia ligada por fio, tão fino que era o pescoço, mais fino que pescoço de Siriema.

Com passos firmes, mas a voz até um tanto branda, disse:

_ Mestre Quincas, é a sua vez!

Ao ouvir as palavras, aqueles olhos de peixe morto não desviavam do chicote, porém não esboçou reação alguma de assombração. Simplesmente o moleque murchou como uma folha de calumbi. Caiu literalmente duro, espichado no chão que nem vara de matacabra, mais esticado que poste de baraúna, e não houve quem o pusesse de pé, e quando se botava de pé parecia boneco mamulengo.

Nessas horas, saíram da inércia todos presentes, e juntos como num coro de reizado se remexaram todos em seus lugares. Ajeitaram seus chapéus de couro e interviram em favor daquele. A uma só voz como cantiga de grilo, mas pareciam o coral das rezadeiras de funeral, tão entoados,como se tivessem treinado:

_ Não! Não!Não! Com padre Abdias, você é louco! Até um cego vê estadodo desse infeliz. Compadre Abdias não vê que este moleque está doente, muito doente! Ele precisa mesmo é de um médico! Se o Senhor bater nele, uma só chicotada que seja, esse moleque vai direto pro inferno e te leva junto com ele!

Exclamaram todos. Daí o velho foi quem arregalou os olhos. Mas parou.

Manda fazer imediatamente um chá, de cabeça de nego, casca de angico, pau ferro, umburana de cheiro, casca de jatobá, canela de onça, e dá pra esse menino pra ver se ele firma.

_ Mariquinha mesmo conhecendo a proeza do ente, adiantou-se e disse:

_ Vou fazer um chazinho pra Ele!

De pronto fez que ia desenrolar o tal chá. Mas mãe, é mãe e conhece as artimanhas de cada filho e conhecia muito bem semblante deste e daquele.

Delfonsinho a essa altura do show, do chororo que ouvia, já havia se esquecido da batata e nem chorava mais. Parecia satisfeito com tremenda surra que seus irmãos levaram e de longe contemplando o pranto foi logo montar em seu jerico.

A bendita ou maldita batata não apareceu e o escândalo já estava feito. O sol já coloria o horizonte da Manga de Baixo com amarelo ouro, e o compromisso de sair cedo já estava prejudicado, mesmo assim prosseguiram na jornada.

De volta de Tarrachil, o Tio Sintô, que era um tio bonzinho para todos seus sobrinhos, conversando com Delfonsinho pelo caminho, dizia:

_Mas Delfosinho, como pode fazer isso com seus irmãozinhos, acordarem aquela hora da madrugada para apanharem por causa de uma simples batata assada?

Ao que ele ainda respondeu:

_ simples não tio! Era a mais linda e crocante batatinha assadinha nas cinzas do fogão à lenha!

Mas as palavras do tio devem ter agido na consciência dele e não agüentando o peso, entristeceu-se. No decorrer da lida entretanto lembrou-se do fato, e pediu segredo de confiança ao tio Sintô contando-lhe como tudo acontecera e que não teve a intenção.

-"Lembrei-me que antes de adormecer ouvindo as ameaças à minha batata, continuei fingindo está dormindo. Porém quando eles pegaram no sono, levantei-me sem ser notado e fui até onde a havia deixado retirando-a dali. Mudando para um lugar onde ninguém a acharia, escondi bem no fundo de um silo, dentror da dispensa, no meio do feijão seco.

O tio Sintô, compreendeu tudo. Deu boas gargalhadas, riu bastante do ocorrido, e mesmo sabendo da verdade, manteve o segredo.

O tio Sintô, deu boas gargalhadas mas compreendeu.

Não contou logo para Seu Abdias, temendo a surra que o Delfonsinho poderia levar. Porém passado o tempo contou tudo para mMariquinha, que sempre foi mais compreensiva e deixou tudo para lá.

E ela disse:

_ No dia seguinte ao ocorrido ao sair para pegar o leite das vacas no curral avistei Delfonsinho sobre o telhado da casa como se tivesse escondendo algo. Parecia comer alguma coisa e eu ainda falei desce daí menino, tu quer cair.

Apesar da pressão dos que apanharam, nada contei para não quebrar o juramento do seu tio. Ficou a lição de que não se deve fazer ameaças, nem brincadeira de mau gosto,nem que seja por uma batatinha tão bonita, branquinha crocante e assadinha nas cinzas do fogão a lenha.

Raimundo Nonato da Silva (NATINHOSILVA)

NATINHO SILVA
Enviado por NATINHO SILVA em 06/09/2010
Reeditado em 09/10/2010
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