Gerusa

Ao Som de Itamar Assumpção

Foi um veado filho da puta que me apresentou a Gerusa. Sob que pretexto ninguém sabe. Nem faço força para descobrir. Não importa. Não era para durar mesmo. Não que ela foi um erro. Tampouco, o maior dos meus acertos. Não foi um engano. Nem para ser um desengano. Não era para durar. O amor é para guitarristas, poetas malditos e alcoólatras terminais. Não para mim. Nunca foi. Nunca vai ser.

Vamos aos fatos. São só esses que interessam. E o melhor sempre fica fora do texto.

Conhecemos-nos e começamos a conversar imediatamente. Adorei olhar para aqueles olhinhos castanhos levemente estrábicos. Aquela boca carnuda de vermelhos lábios. As sobrancelhas grossas de descendente de italianos. O corpo bem fornido. Pernas bem torneadas enroladas em jeans boca de sino e botas. O som de sua risada fazia eu me sentir muito bem. Diria um balsamo para meus ouvidos cansados. Ela tinha 18 anos e eu vinte e cinco. Isso não ia terminar bem, mas o vinho tinto e a erva embalavam tudo.

Acabamos no apartamento onde eu morava, sobre a minha cama de casal e fizemos amor durante toda a noite com apenas pequenas pausas para uns goles e umas tragadas. Dormimos agarradinhos pouco depois que o sol nasceu. Pareceu um sono muito relaxante. Na sábado ela ainda estava lá. No domingo depois do almoço que preparei para ela – já apaixonado- convidei-a para morar comigo. Ela topou. Nem avisou os pais. Fazíamos amor a toda hora. Pela primeira vez na vida eu achava que gostava uma mulher. Parecia que a vida iria ter sentido. Pois sim...

Gerusa era boa de copo, de forno e fogão, de cama e apertava um baseado mais rápido e mais cilíndrico que eu. Não trabalhava, porém eu achava que iríamos levando com o salário que eu recebia daquele pasquim indigente que eu trabalhava. Ela leu toda a merda que eu escrevia e dizia que gostava. Ela parecia gostar do mesmo som psicótico que eu. Tinha gostado dos meus amigos porra louca e maconheiros. E íamos fundo na experimentação de substâncias. O sexo era bom. Com ela sempre era. Beijos de língua bem molhados, sua vagina na medida certa, seu fôlego interminável, seus peitos pequenos de bicos rosados e quase virginais, seus pezinhos sensuais, suas tão propaladas coxas. Puro desejo aquela menina. Parecia que a vida era boa. Só eu na minha imensa ingenuidade dos 25 anos. Isso não iria acabar bem.

Saímos esporadicamente porque como ela mesma dizia quando eu lhe perguntava o que ela queria fazer e ela respondia que queria “fazer nada”. Ficamos em casa bebendo nosso vinho, fumando nossas ervas e assistindo filmes e lendo. Mas sempre parecia que ela estava dois drinques na minha frente e eu achava que estávamos entornando juntos. Não suspeitava de nada até encontrar uma caixa de Valium 10 no banheiro do meu apê. Perguntei para Gerusa o que era e ela me ofereceu uma cápsula. Engoli com vinho e minutos depois eu estava numa “viagem” daquelas! Acendi um natural para rebater que me deu uma tranqüilidade instantânea. Gostei daquele produto e eu comecei naquele dia a consumir junto com ela. Não no seu ritmo que era de quatro ou cinco de uma vez. Perguntei onde ela descolava e apenas sorriu e me disse “não se preocupe, quando acabar descolo mais”. Parecíamos o casal mais feliz e perfeito da face da guerra. Com o relacionamento calcado nas drogas, na bebida, na musica e no sexo. Nada saudável olhando pelos meus maduros olhos de hoje. Na época parecia pura curtição. Um mês de se passou, dois, três e logo um ano se foi nessa base. Era assim que éramos naqueles tempos loucos. Ela estava cada vez mais bem humorada e queria dar uma trepada pela manhã quando eu acordava para trabalhar. Quando eu chegava à noite o jantar estava pronto e sempre tinha um “friquezinho” no cinzeiro da sala nos esperando. Eu sempre trazia cerveja, vinho e uísque para casa. Já antevia uma promoção no trabalho para juntar dinheiro e comprar um apartamento maior ou até mesmo uma casa com varanda e dois cachorros grandes e vários gatos. Quando falava isso para Gerusa ela sorria e formavam graciosas covinhos em suas bochechas rosadas e saudáveis. Ela tinha perdido o preconceito e agora dava e recebia sexo oral. Estávamos ficando bons nisso. No seu aniversario de 19 anos dei-lhe um óculos ray-ban legitimo e paguei a sua festa para um numero seleto de amigos dela e de amigos meus. Só os mais íntimos. Ficando bêbados como gambás naquele dia histórico e por mais que seja constrangedor admitir isso Gerusa ficou marcada em minha memória porque com ela consegui uma proeza inédita até então para meu currículo de macho: dei três fodas nela sem tirar de dentro. Coisa para profissional e eu gostava dela o suficiente para tentar fazer isso. Ficamos cada dia mais íntimos. Dizem que isso só trás filhos e problemas. Eu concordo plenamente.

Uma noite de sexta feira tinha acabado de transar e estávamos dividindo um cigarro de cravo que ela tinha comprado e ela acabou por me contar sobre sua fantasia sexual de ser amarrada na cama, vendada e “gozar feito uma cadela” como ela disse. Nada mal. Fantasias existem para serem realizadas e lá fui ela. Quando terminei e a desamarrei foi brindado por um orgasmo múltiplo de uma fodaloucamaluca que ela me retribuiu. Saímos radiantes no dia seguinte para um mercado das pulgas e compramos uns quadros de filmes antigos para ornamentar as paredes do apartamento. Foi um dos dias mais agradáveis da minha existência terrena. Terminamos o dia nos amando loucamente e fazendo juras de eternidade. O relacionamento tinha atingido o ápice. Dois anos e pouco já convivendo diariamente. Claro eu já tinha dado minhas broxadas. Isso acontece com todo homem de verdade. Quem diz que nunca passou por isso é mentiroso. Ou veado. Ou as duas coisas. Tem dias que a gente até está a fim, mas o corpo não agüenta. Coisas da vida. Eu achava que isso não era nada afinal eram duas vezes em dois anos. Ela tinha sido taxativa quando disse que tudo bem se não quisesse transar um dia qualquer. Ela só queria ser tratada com respeito e carinho e isso eu nunca lhe neguei. Só que tudo que chega ao ápice vai ao declive logo depois. E amor não é exceção. Nem sequer chega a ser regra. Alias, as ciências já disseram que isso tem explicação química. Apenas uma ilusão de ótica que criamos em nossos cérebros embotados de papo furado.

Quando estávamos para completar três anos juntos eu comecei a achar que Gerusa estava distante. Certa vez lhe perguntei o que era e ela disse que eu estava imaginando coisas. As mulheres têm um modo perfeito de serem evasivas e nos deixarem acreditando que essas paranóias são apenas coisa da nossa cabeça. Gerusa. Ela era uma boa mulher em muito sentidos. Quase em todos. No dia em que disse que a amava e que ela era a razão da minha felicidade ela se fechou em copas de vez. Na minha satisfação eu não notei ela mudar da noite para o dia na minha frente.

Agora as drogas não eram meio de diversão. Estávamos mandando tudo para dentro sem nenhum critério. Comprimidos de vários tipos e formas e tamanhos e cores, haxixe, álcool em profusão, cocaína e algumas vezes ela apareceu com morfina que usamos com total abandono. Trepavamos cinco ou seis vezes por semana e depois passou a ser apenas duas vezes. Nem liguei. Amava o modo como aquela mulher se vestia, dormia, cozinhava, andava pelo apartamento, respirava ou apenas fumava olhando para uma parede durante um longo tempo. Não me toquei de nada por algum tempo. Afinal ela sempre dizia que isso era coisa da minha cabeça. Até o belo dia que ela começou a enxergar louras voluptuosas se oferecendo para mim dentro do armário, debaixo da cama, dentro do boxe do banheiro, dentro do meu criado mundo, atrás dos meus livros na estante ou na almofada do gato de rua que tínhamos adotado. Disse para ela voltar para o vinho tinto e para a maconha que essas sílfides desapareceriam por completo. Foi uma briga homérica e ela pegou sua mochila e partiu sabe-se lá para onde. Não falara com os pais desde que viera morar comigo e eu nem sequer os conhecia. E tampouco queria conhecê-los. Quase enlouqueci vendo-a ir embora. Homem não chora, é o que a gente aprende com nossos pais. Eu tinha vontade e ter uma marreta e quebrar o apartamento inteiro. Aplaquei minha dor com hash e uísque puro. Sentia-me derrotado. Eu tinha dado uma bola fora, era isso que eu dizia para mim mesmo. Tentei voltar ao trabalho e afundei-me nele para não ter que pensar. Fazia horas extras todos os dias adiando a minha volta para casa. Poderia ter ficado rico com esses extras. Mas gastava grande parte em bebida e pó para pensar o mínimo possível. Minha chefe começou a estranhar eu na redação chegando tão cedo e saindo tão tarde mas não disse nada. Percebia, quando não estava muito ressacado, que ela parecia querer perguntar alguma coisa e não fazia. Sou do tipo de pessoa que mantenho a humanidade a um braço de distancia de mim. Quando mais arrasado pela saudade que sentia de Gerusa mais eu me “automedicava” e cheirava como se a América Latina fosse cessar a produção no dia seguinte. Não dormia mais de duas horas por noite e ainda assim abatido pela exaustão do meu corpo. Acordava atarantado e suando frio, tomava um banho morno, engolia uma pílula, me vestia, mandava uns tiros de cocaína pela caminhada que iria fazer até o meu emprego medíocre, escovava os dentes daquele jeito e saia já meio anestesiado. Chegava a redação, fazia meu trabalho do jeito que dava, tomava baldes de café e não raro dava um fugida para um botequim próximo para uns tragos rápidos de conhaque e voltava procurar mais trabalho. Só queria fazer sarar a dor do meu coração partido e no mais não pensar muito. Uma tarde eu estava saindo para uma consulta médica e a Gerusa me esperava na porta do meu emprego. Tinha olheiras profundas como se riscadas à rolha queimada como se tivesse chorado muito ou se chapado muito. Fui ao seu encontro. Ela abriu os braços e cai neles chorando e pedindo perdão. Ela acariciou meus cabelos, concordou em à consulta comigo e aceitou um trago depois. Conversamos e decidimos morar juntos novamente. Ela finalmente resolveu que me amava e que queria ficar comigo. Fomos para casa e comemoramos o retorno daquela linda mulher com uma bela fornicada em homenagem aos velhos tempos. Entendemos-nos maravilhosamente na cama, como sempre.

Um mês depois começou tudo de novo. Ela dizia que estava entediada e eu a levava passear. Ela dizia que queria conhecer pessoas novas e eu a levava para tudo quanto era canto que eu ouvia som ao vivo e muita agitação. Depois ela reclamava que eu estava me drogando demais. Depois que eu diminuí a marcha ela reclamava que eu estava careta e não a estava acompanhando. Gastava meu dinheiro e ainda por cima dizia que eu deveria deixar aquele trabalho de merda. Eu estava no limiar dos trinta nos e minha paciência estava se esgotando, mas resolvi me fazer de cego, surdo e mudo. Ela ficava possessa como o cão quando eu concordava com tudo que ela dizia com um vago meneio de cabeça. Começou a encontrar morenas, louraças e ruivas maravilhosas debaixo da cama novamente. Não sei precisar a quantidade de drogas que estávamos usando e com certeza isso não estava ajudando nenhum dos dois. Quando íamos para cama continuávamos nos entendendo às mil maravilhas, mas vestidos dificilmente poderia se dizer que éramos um casal. Os amigos se afastaram e eu nem ligava. Precisava resolver minha vida. Eu a amava, porra! Do fundo do meu coração e da minha alma torturada, eu a amava! Parecia que quanto mais esforços eu envidava para continuarmos juntos mais a ruptura total parecia próxima. Dez dias antes do meu aniversário o golpe fatal. Com ar professoral ela dizia que não sentia mais nada por mim e que iria embora e me deu “feliz aniversario, e essa merda toda” pegou novamente sua trouxa e sumiu de vista. Entrei em pane de novo! Dessa vez não teria volta, ela disse. Não teria choro nem vela. E que não haveria nenhum futuro para nós, afirmou categoricamente. Estremeci. Afinal, Gerusa era uma garota decidida. Três anos e pouco da minha vida jogada no ralo

Depois de uma semana pirando até quase o surto psicótico passei o dia do meu aniversário em cana em virtude de uma briga de bar aterradora em que meti e a vitima levou a pior com costelas quebradas e uns dentes a menos. O cara não registrou queixa e fui liberado quando a bebedeira passou. Quem tem cu tem medo. Resolvi dar um jeito na minha vida e quando voltei ao meu apartamento comecei a juntar as coisas que a Gerusa tinha deixado para trás. Doei aos pedintes alguns sapatos, uma agenda foi para o lixo juntamente com um bastão de batom, os livros dela que sobraram para o sebo e o dinheiro arrecado gastei em cerveja e doses e mais doses de rabo de galo. Eu precisava me recuperar daqueles três anos que pareciam tão lindo e poético no inicio e no fim se transformaram num inferno e nem sei por quê. Pedi férias do emprego. Fui para casa e tomei um porre monumental de tudo que tinha por lá. Dormi dois dias. Acordei com o telefone gritando na minha orelha. Resolvi não atender. Tomei um banho e fui para a rua. Não tinha para onde ir a não ser para o bar. Rumei para lá. Tomei outro porre, mas não tão violento. Decidi tentar me consolar com as garotas baratas e seus odores baratos. Voltei varias vezes naquele mês. Duas semanas depois já estava mais conformado. Voltei a trabalhar no fim de 30 dias e tinha um bilhete na minha mesa com a letra da Gerusa no envelope. Joguei no cesto sem ler. Chega! Eu queria paz na terra, pelo menos para mim. Alguns anos depois fiquei sabendo que ela tinha tido um filho de um morto de fome mais fodido na vida do eu. Ossos do oficio. Não tenho magoa dela depois de todo esse tempo passou. Não somos amigos e nunca vamos ser. Nunca mais a vi e nem quero. Pelo bem daqueles dias mágicos que passamos. Meu consolo é pensar que ambos nos machucamos muito. Pode ser muita pretensão minha o que acabei de dizer. Na maior boa fé, valeu como experiência. Comigo é uma vez e nunca mais. Eu sou assim. A parte boa é que sei escrever e assim mitigo um pouco minha dor a cada dia.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 15/09/2010
Código do texto: T2499659
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