O FILHO DA MENDICÂNCIA

O FILHO DA MENDICÂNCIA

Foi no final da década de 70 que conheci o Délio quando nos apresentamos na Academia. Eu ainda era um rapaz inexperiente, interiorano. Ele além de capitalista ainda era graduado e alguns anos mais velho em idade. Ele também era simples, e, por isto fizemos boa amizade no decorrer do curso.

Délio morava fora da caserna enquanto eu vivia no internato. Àquela época ser interno era padecer nas mãos dos oficiais e cadetes veteranos. Só para se ter uma idéia as aulas de natação eram no meses do frio e o aluno-dia-ao-internato depois das 22:00 horas chamava os neófitos no pátio e mandava todos colorarem o short de natação, e, era aquela correria pelo pátio sob o comando dos veteranos.

O trote só terminava depois que havia o toque de silêncio.

No dia seguinte era um Deus nos acuda. E tome ordem unida e tome inspeção de uniforme e tome inspeção de cabelo, barba e coturno.

Entretanto, o tempo passava célere para felicidade geral dos cadetes neófitos. E veio o acampamento: uma loucura total a começar pela jornada preparativa à fazenda do Cercadinho, nos arredores de Belo Horizonte, e pelo molinete depois das aulas que duravam duas horas.

O acampamento foi na cidade de Jaboticatubas e durou uma semana. Desempenhei o papel de guerrilheiro. Durante a noite ao adentrar a praça do acampamento e estrourar uma bomba de efeito moral fui preso e amordaçado.

Délio reclamava da instrução, e, durante o almoço conversa comigo. Ele costumava pegar o bandejão e colocar três bifes. Ele comia um e meio e deixava pedaços de carnes no vasilhame. Numa das conversas ele contou-me que morava no centro da cidade e fez-me convite para almoçar em sua casa com sua família, num domingo. Aceitei.

Foi num domingo de abril que fui almoçar com o amigo Délio e conheci sua família. Ele não tinha pai e tinha somente uma irmã mais nova. A mãe já havia entrado em janeiros. O almoço foi degustativo, regado ao vinho suave.

E o curso avançava pelo tempo. Délio tinha dificuldades na educação física e na natação. Ele fumava muito e sua coordenação motora na água era sofrível. E o amigo terminou o curso reprovado em natação.

Em outubro de 1978 minha turma formou-se e fomos declarados aspirantes-a-oficiais. 35 companheiros ficaram em segunda época em estatística e Délio ficou reprovado no curso na prática de tiro e por causa da natação, mesmo ele tendo outra chance de repetir a prova. Mas a dificuldade dele era a coordenação pernas-braços, respiração e estilo. Um oficial colocou-lhe o apelido de galo cego.

Terminada a festa de formatura cada um foi para sua unidade. Fui para Governador Valadares, onde meus moram até hoje. Perdi o contato com Délio por quatro anos.

Em outubro de 1982 reencontrei o amigo no batalhão de Santa Teresa, na capital, para onde vim transferido. Reatamos a amizade. Délio havia se formado na Academia três anos mais tarde à minha formatura.

O amigo deu-me algumas coordenadas sobre o serviço de policiamento, e, eu o acompanhava nos seus turnos e noturnos como estagiário e para conhecer a área da unidade. Numa noite o amigo parou a viatura embaixo de um viaduto e começou a conversar com os mendigos. Só observei. Mas estranhei o comportamento de Délio, porém fiquei no meu lugar de estagiário. Nada comentei nem perguntei. Ele disse que os mendigos são ótimas fontes de informações para os policiais. Terminamos o serviço e fomos embora para casa depois de fazermos o relatório ao comandante do batalhão.

O tempo passou fui promovido e transferido para outra unidade na capital. Délio e eu às vezes nos encontrávamos na Praça da Liberdade, principalmente quando coincidia o serviço no domingo. Ele não se casou e continuava fumando. Ele nunca me falou nada sobre mulher. Eu também não o perguntava. Ele também foi promovido. E aí perdemos o contato por bom tempo.

Em 1990 fui para o primeiro batalhão e lá reencontrei Délio, ainda solteiro e envelhecido. Durante o almoço observei que ele continuava a fisgar três bifes e a comer um ou dois pedaços somente. Depois do almoço ele tomava café e vinha para o alojamento onde tirava boas tragadas do cigarro. Eu não fumava mas não me importava com o cigarro do amigo. Proseávamos e continuamos amigos até eu ser transferido para o Estado-Maior.

Trabalhando no Comando-Geral fiquei sabendo das histórias do amigo Délio: ele nas folgas voltava aos viadutos, pagava um almoço para uma mendiga e a levava para um motel, relacionando-se com ela. Depois a devolvia ao seu mísero habit. Délio reformou no final da década de 90 e deve estar vivo até hoje.

Em 1999 conheci um jovem soldado com o nome de Délio. Não tive a coragem de perguntar-lhe o nome do pai.

F I M

PS: O nome Délio é fictício, porém, a história é verídica.