Outro Conto Cotidiano

-Quando matam alguém lá na vila o tráfico fica agitado.

Porra, chove policia e jornalistas e aí sim os negócios caem e fica todo mundo com um humor de cão. Noite passada levaram o “Bonezinho” para o meio do inferno. Pobre diabo! Dezesseis anos ou coisa que valha. Não viveu o suficiente para que alguém possa dizer que ele era ou seria alguma coisa da vida. Estou nesse ramo há vinte anos. Claro que já estive do lado de lá do muro. Faz parte do nosso trabalho. Malandro de verdade é aquele que tira sua etapa no presídio sério e bem comportado. Não se pode ter vacilo no CRIME. “O crime é silêncio”. Esse é o lema. A lei escrita está aí para enganar os trouxas e deixar o dito “cidadão de bem” mais tranqüilo. O bacana que mora nos bairros acha que está tudo bem e fica apavorado quando os “de menor” resolvem sair fazendo arrastão pelas suas belas casas, amplos & modernos & confortáveis apartamentos, pelas suas ruas arborizadas. Alguma dúvida? Só então é que burguesia bate no peito e fica indignada, criticando tudo e todos e se pergunta para onde vão os impostos que eles acham que pagam! Quem paga imposto é a favela, xará. A comunidade. Paga um imposto mais pesado sem saúde, educação ou saneamento básico. Não sou político. Sou traficante. Apesar de já ter saído de lá há muito tempo. Só questão de negócios. Continuo bancando anualmente o desfile falido das escolas de samba quadrados que paga mico no carnaval curitibano, o pior do Brasil. Para nós do movimento o melhor. Afinal, os filhinhos de papai ricos estão todos na praia e ávidos para fazer merda. Faço minha doação para lavar dinheiro e abater impostos. Para todos os efeitos fiscais sou empresário do ramo de importação e exportação. Toda a papelada que está no escritório de meu advogado canalha e pouco interessado no cumprimento do Código Penal. Com ele é sossegado. Como ele tudo passa pelo crivo da GRANA. Ótimo. Ultimamente não tem nem B.O. Boletim de ocorrência, mano. Ou como diz os galhofeiros de plantão: “Bom para otário”. Sentiu mais ou menos como funciona aqui nesse “país tropical”? Os colarinhos brancos também agem como nós, mas eles têm “imunidade parlamentar”. Também colaboro com a campanha do meu candidato. Ele ganha o dele e deixa-me ganhar o meu sem que ninguém venha atrapalhar. Nem preciso dizer que a policia também faz a sua parte. Recebe o dela e não estrila. Muito raramente vez um novato querendo mostrar serviço para subir rápido e acaba mal. Ou leva um tiro nos cornos dos próprios colegas numa emboscada. Ou arrumam um processo administrativo no quartel para o cara e o encarregam apenas de serviço burocrático interno ou cai na nossa mão e aí a coisa fica preta pro sujeito. Se alguém aí não está entendendo o que eu estou falando é porque anda lendo muita revista e fofoca ou assistindo muita novela ou ao Jornal Nacional que só te desinforma. Mundo cão, meu querido. Só mundo cão. È não venha querem pregar doutrina marxista aqui no pedaço que você dança. Pergunto para o ultimo intelectualóide que veio nesse embalo furado aqui no meio do movimento. Óbvio que você vai ter que encontrar o presunto ou fazer uma sessão espírita de reza brava para poder perguntar ao desencarnado. Não durou uma semana. No primeiro deslize nego pula. Não podemos dar brecha nenhuma. O único problema do tráfico é que ele e ilegal. Se não fosse seria uma empresa como outra qualquer inclusive com plano de carreira. Você for honesto, esperto, não tiver medo de trabalhar dobrado e bom de conta você tem futuro garantido nesse ramos. Só que não pode fazer que nem o “Bonezinho”.

Coitado do piá. Caiu nessa barca furada que é o craque por pura falta de personalidade. Que eu saiba o moleque sempre foi para e escola e estava inclusive procurando estágio e de bobeira deu uma cachimbada só que onda. Mudou da noite para o dia. Na primeira tragada. Não se preocupem. Quando a pessoa tem o miolo mole é assim mesmo o proceder da droga. Como sou da velha guarda não me meto com sujeira. Já dizia o velho Tim: “... que traficante é viciado”. Problema é de quem quer conciliar o que não existe conciliação. Negócio é negócio. Comércio é comércio. Não se pode misturar alhos com bugalhos muito menos gregos com troianos. Fume seu barato sossegado na hora de folga ou amarre uma bela bebedeira e faça sua cabeça e vai dormir. Não queira ficar experimentando o teu carregamento que você fica no prejuízo e se dá mal. Os patrões colocam óculos na sua atitude e depois você vai ter que explicar tim por tim para o dono da bocada ou para o delegado de policia. Quando a sua corridinha é curta nem tente se meter a gato mestre por a gente sabe quem é do ramo é quem apenas quer curtir “emoções fortes”. Movimento não é esporte radical. Movimento é sobrevivência. “Darwinismo Social” no dizer dos ditos “inteirados”. Movimento é trabalho sério e duro. Demora alguns anos para você se firmar nesse ramo. Se o longo braço da lei não te capturar antes ou a inveja não der fim aos seus planos. Hoje posso dizer que sou realizado profissionalmente. Não toco na droga, o dinheiro vai para conta de laranjas e moro num bairro mais legal e mais central num excelente apartamento de três quartos e uma ótima vizinhança que me tira para empresário bem sucedido. Já estou chegando aos quarenta. Mais dois ou três anos. De burro só a cara o jeito de andar.

Pode parecer que esteja apenas me justificando. Acreditem, amigos, não é nada disso. Só estou fazendo um panorama mais amplo sobre as mentiras que se escrevem todos os dias nos noticiários e noticiosos. Inclusive, hoje tenho cacife para bancar um curso de Administração de Empresas numa boa universidade particular e estou estudando bastante entre um carregamento e outro. Entre um deposito bancário e outro. E entre a minha fiscalização diária em meus postos de revenda para recolher a féria. Porém meu final de semana não vai ser legal porque alguém (como se eu não soubesse quem...) resolveu dar cabo do “Bonezinho”. Como todo viciado virou sem vergonha. Agora ia apavorar os trabalhadores das empresas que faziam divisa com a nossa favela. Prá quê, meu deus do céu?! Já tinha arruinado a vida de seus pais e irmãos. No seu barraco já não tinha mais nem as torneiras porque o zé-mané passava o alumínio nos cobres só para levantar uns trocados e sustentar sua “álgebra de necessidade”. Babaca. Deixou a família na miséria total por puro egoísmo. Todo viciado é egoísta e egocêntrico. Não percebem que estão girando cada vez mais próximo ao irremediável fundo do poço e continuam insistindo no erro. Isso é fatal. Parece que a droga se acopla a personalidade fraca do usuário. Aqui na cidade pedra virou onda. Do filho do deputado e do desembargador ao filho das ruas e da miséria. A juventude toda tá nessa. Confusão generalizada. O playboy está preferindo virar um molambo de cobertor nas costas que aturar a cobrança e os seguidos internamentos propostos por sua família. A maior inversão de valores que eu já tive noticia. Nunca vi um troço tão escravizante. Tem nego que de prima já viciado pelo resto da vida. Nenhum barato. Só fissura. Fissura. Fissura. “Nóia”, como se fala aqui no Sul. PARANÓIA. Entendeu meu recado? Tem policia até debaixo da cama e dentro do armário! Isso é ficar numa boa? Só se for em Irajá, camarada.

A história do “Bonezinho” é a mesma de sempre. Sem tirar nem por. Filho de trabalhadores honestos e honrados e estudante do primeiro ano do segundo grau que se meteu com a turma errada. Uma vez foi o que bastou. No dia seguinte já estava junto com os seus iguais fazendo bandalho, cavalo louco e roubo em farmácias. Dizem que ele no meio da loucura estuprou a filha de um homem respeitado na comunidade. Não sei a moradia da verdade nesse caso. Pelo menos foi o que os meus vapores comentaram uma vez, mas logo morreu esse assunto. Cada um com seus problemas. “Bonezinho” vendeu tudo que tinha em sua casa. Sua mãe chorava, berrava, soluçava e se descabelava e o moleque não se tocava e fugia de casa e quando estava na pior – sem comer e sem dormir – voltava e era acolhido por sua família para recomeçar o ciclo tão logo se sentisse um pouco mais fortinho. Eu já tinha visto isso demais e sabia como essa epopéia terminava. Não deu outra...

Apagaram o desgraçado quando conseguiram fechá-lo numa ruela da favela. Descarregaram dezoito cartuchos no infeliz. Desfigurando o corpo todo. Caixão fechado. Paz para seus país e irmãos que resolveram não seguir o seu exemplo. Aos pés do cadáver uma divida de 30 pratas com um “vaporzinho” qualquer. Claro que os urubus da imprensa ficam enchendo a cara pelos bares da redondeza e se alegram imensamente com a tragédia alheia vendendo sensacionalismo barato. A policia fica em polvorosa porque a sociedade civil vai esbravejar por segurança pública e o Governador fica pegando no pé do Comandante que pega no pé dos oficiais que pegam no pé do recos. Aí ninguém pode trabalhar sossegado sob tanta pressão. Nem eles nem eu. E eu acabo ficando ser margem de lucro para dar uma viajada até o Rio de Janeiro fumar minha manga rosa em pleno Posto Seis. Merda!

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 04/10/2010
Código do texto: T2536939
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