Diana guerreira

Fim de tarde. Aos poucos o horizonte anuncia o pôr-do-sol em bocejos crescentes. Farfalhar de algarobas por ruas de calçamentos e nas travessas de piçarra meninos empinando pipas. Nas praças largas os carrinhos de pipoca, o colorido do algodão doce e nos estreitos becos daquela histórica cidade redemoinhos levando para longe as folhas secas caídas das lendárias castanholas e saias arribadas para o desespero das distintas senhoras devotas do sagrado coração de Jesus que nos montes, aglomeradas, de volta aos lares depois de longa jornada de oração e penitência da sexta-feira do sacramento da penitência benziam-se pelo sinal da cruz e gritavam por Santa Bárbara e São Jerônimo.

Era o fim da tarde, um sentimento de dia diferente de tantos outros ali vividos. Único na vida de gente pacata e hábitos cotidianos, viventes que sonham com dias melhores e arrebatamento para outra vida, outra dimensão mais angelical, menos sofrida e recheada de flores e rosas por todos os lados, além de querubins e arcanjos de bumbum de fora a tocar imensas harpas. Majestosos sons a encherem os olhos e fazer sorrir os corações cansados de dias cinza de trabalhos enfadonhos.

A mudança da cor no horizonte anunciava a retirada do astro da luz e do calor que logo cederia espaço para a dona da noite. A lua nova apontando mais para a direita, surgindo paulatinamente por entre as nuvens em tons de branco e azul. Entre os dois, o tom alaranjado a sangrar o céu enquanto pancadas arrimadas nos corações humanos de episódios nunca previstos, nem em cartas ou búzios ou qualquer outro meio que arrisque a sorte alheia, soavam na melodia saída da gaita do cego Aderaldo que tocava nos degraus da santa igreja.

Já mais em baixo, na imensidão dos ares, as aves voam, voam, em revoada cênica, orquestrada, magistral, vadias a bailar. Uma terna sinfonia de asas abertas a anunciar: – LIBERDADE. Liberdade bordada no céu sobre o rio que corta a cidade. O sol se escondendo aos poucos e o vento norte levando consigo a temperatura quente que fazia assado o nariz que inalava aquele ar tão estarrecedor.

A cena diária repetida tantas vezes há tantos anos e sempre uma novidade para os corações em aflição. Fim de tarde e as portas dos comércios se fechando, todas, num ritmo cadente. Homens de chapéu e bicicleta e mulheres de lenços ou sombrinhas a saudarem-se em despedidas cansadas.

Livre do cansaço enfadonho, das inalterabilidades, dos constrangimentos, dos gritos do patrão e do tempo escravo de si alimentado por maldades humanas, pela falta de lógica e do bom senso, Diana anda, anda perdida em devaneios, enleios, idealidades pelos arrebóis sem prumo; caminha pelos arredios e arredores da cidade morta, falecida; cidade adúltera, corrompida de mortandade, atravessa as ruas frívolas: carroças, passageiros, bicicletas, o homem do cavaco chinês, da lavagem do porco, do gelé e o bicheiro gritando para a velha que vem das compras do mercado público:

- Que nos manda hoje?

- Qual é o palpite?

- De manhã deu cobra...

- Deus me livre de bicho que rasteja.

- De tarde deu macaco...

- Ave Mãe do céu, só agouro!!!

- De noite pode dá coelho ou burro...

- Ninhada ou o que dá coice, deixa pra depois...

... Diana azoinada, rebelada, entristecida porque não podia resolver o que para ela não havia solução, não havia. Chega em frente ao banco, um banco qualquer da cidade e da porta de vidro sua imagem refletida está a imagem de Narciso nas águas do rio também; imagem de moça pobre, ignóbil, estatura abaixo da média, a gordura sobrando pelos lados da blusa, rosto comprido e amarelado. Os cabelos compridos e despenteados marcados por restos de pinturas sucessivas, as unhas compridas e o desgaste do esmalte, mas diante de tanta dor, sentia uma pontada de felicidade a arder no útero gestor de compaixão. Ela um ser singular de palavras faladas para dentro. Enxergava a si pela imagem que brotava do desejo de ser a própria vontade intrínseca.

Da boca que lhe faltava alguns dentes necessários um sorriso colorido pelo batom vermelho já lambido ou gasto pela metade. Diana sorria, sorria livremente, exultante. Sorria de boca aberta, escancarada de sua própria desgraça. Um riso solto, melódico, incógnito... Por trás de seu retrato ignoto, a imagem da Catedral intransigente, da grande igreja de pedra, brusca, monárquica, austera, portas fechadas, fachada ornamentada e o sino parado, sem som, guardião do templo e Diana ali em transe com aquele quadro que para si tinha o valor de um quadro pintado por Michelangelo...

- “E olhe o picolé, troco por litro, garrafa e... picolé vai moça?”

Diana viera de Passagem de Pedra. A dificuldade da vida rural, a seca aterradora, a morte do gado nos pastos sem verde e água, as oportunidades poucas de estudar. A família de tantos irmãos, a morte da mãe no último parto quando dava a luz ao oitavo filho daquela sofrida família que acreditava onde se come dois, se come tantos... Um amontoado de desgraças sucessivas fez com que a criatura abandonasse sua terra natal a tentar num outro lugar a sorte da vida como se tira sorte na brincadeira da moeda na escolha por cara ou coroa. Viera a pé, uma trouxa de roupa, nenhum documento e no coração aquela amargura da saudade que aflige o peito.

No peito a semelhança de uma ferida aberta que não cicatrizava. Ferida inflamada, cheia de dor, de odor, de amargor, sem pudor pelas cenas que se sucedem em seu pensamento juvenil. E as imagens como rolo cinematográfico reprisando cenas vividas de horror, de lágrimas, de solidão como missa fúnebre para defunto morto em emboscada.

O pai abatido, já cansado, se entrega à bebida, ao desgaste. Desequilibrado sem qualquer condição de criar os filhos sem a presença feminina, emprego nem esperança, conhecia como lição apenas a chibata que ressoava em qualquer movimento que julgasse indigno. O coro da filha mudara pelas pancadas, pelos açoites descabidos na pimba do boi ou moio de cordas molhadas.

Rui mocó era eu nome de rodas de amigos, o de batismo se perdeu pelo não uso. Agricultor de mãos calejadas e coração petrificado. A vida que conhecia era aquela de arrancar toco ou cuidar da criação. Vestido de roupas doadas era analfabeto de pai e mãe. Não tinha visão de futuro e estava sempre a pedir. Trazia um ranço na fala e só falava apenas o necessário e nunca podia ser contrariado. Trazia os filhos nas rédeas e dava-lhes o mesmo trato que devotada as cachorros que se aglomeravam no terreiro de onde passava sol e chuva.

A casa era um antigo galpão, sem qualquer conforto ou comodidade. As divisórias feitas de sacos de ração e comida era a coisa mais rara, pois quando tinha era a comoção de vizinhos de iguais condições porque a miséria, apesar de rude, é solidária. Alguns solidários multiplicavam o pouco que tinha e em troca os filhos de maior estatura ou força, de corpo formado, retribuía com a realização de pequenos favores.

Diana nada fez de errado, julgada em seus pensamentos. Fizera tudo a tempo e a hora como era de sua obrigação de irmã mais velha e se foi para a escola noturna sacramentalmente. Lá chegando, como de costume, não havia aula. O pau de arara atrasara e os professores não foram em protesto. Era uma sexta-feira dia de seresta na cidade, não pensando duas vezes partiu com as amigas de sala de aula e como lhe convinha a idade passou a se divertir freneticamente.

Por instantes viveu igual a tantas outras meninas de sua idade. Viu-se na roda de pessoas iguais em desejos, vontades e atitudes. Percebeu o corpo arder, a boca necessitada de outra boca e na latência da idade se sentiu mulher e provou a necessidade de ser gente quando atracada pela cintura pelo corpo oposto, se sentiu desejada e desejou a permanência daquele momento que a tornava instintiva. Deixou-se ser invadida pela volúpia e o fogo da bebida adocicada com a queima da vontade de realização foi ao delírio e não percebeu o fim da música e a continuação do movimento num outro espaço, próximo ao rio arejado pela luz da lua minguante. Agora era ela e o outro a se desenharem em carícias, trocas mútuas de cobiças corporais até a volta do senso da responsabilidade e o despertador trazê-la de volta a realidade. Dançou, bebeu, conversou e já passando um pouco da hora de sempre chegar em casa se foi com um amigo que resolveu acompanhá-la devido o adiantamento da hora.

A caminhada foi lenta e silenciosa. Conversaram em pensamentos perdidos na escuridão do espaço estreito enquanto caminhavam sobre os sonhos e desejos de ambos vivenciados há tão pouco tempo. Conversa essa que se deu por quebrada quando aquele vulto surge do nada e se apodera do corpo da jovem manceba em socos, pancadas e puxões e sem direito à defesa, ver-se lastrada de sangue. Um líquido quente, amargo, sangue misturado com ódio, com tudo... Era seu pai, que viera ao seu encontro e depois desse ato grotesco, levou-a até em casa amarrada e arrastada como se abate uma vaca, uma porca, uma égua ou qualquer outro animal que não pensa, não sente, não age, não e o corpo do jovem mancebo estrebuchando no chão frio da noite golpeado pela ira do pai cego, pego a traição onde hoje só resta a cruz marcando o espaço do ato frio.

Diana se olha no espelho e não vê as mesmas cenas, os mesmos quadros. Fecha os olhos e vai flertando com a memória na elaboração da cena de sua expulsão do seio da família. Andou, andou durante toda a noite em dor, o corpo chorando o sangue que jorrava de si e o coração se calando em névoa. Andou quando percebeu que a luz do sol era chegada e o clarão do dia ardia seus olhos que avistava a esperança entrada da cidade. Correu ao encontro do rio e logo passou a banhar-se na barragem, a água que lavava seu corpo, seu rosto, sua alma. Água que a fez sonhar com sereias, com baleias, talvez com batismo, com vida nova, vida essa que não lhe poupou.

Diana refeita continua sua viagem, para em antigos barracos instalados ao longo do rio, pede a uma velha senhora um pouco de água e comida em troca de trabalho. A velha senhora, cafetina como era, com olho clínico e passo de mágica apodera-se da jovem como uma fada-madrinha, uma mão cheia de afagos e na noite o velho barraco já tinha novidade: carne nova, carne jovem, carne inocente que se disputava na faca, no tapa. Nas mesas era o abate, o açougue, o leilão para deflorar uma manceba recém chegada. Ana agora passa a ser Diana, a guerreira, a batalhadora, a invencível, a própria deusa afrodisíaca, a progenitora da urbe do sal, cidade erguida as margens da água do rio corrente na direção que não queria mais seguir; lugar de mulheres aguerridas, a Diana dos postos, das barragens, dos caminhoneiros, dos senhores salineiros e bêbados dos becos perdidos, das praças, dos pedintes, da vida f...á...c...i...l...

A terra de Luzia, a santa da luz, da fidelidade ao amor divino, castra imaculada, a padroeira da resistência, das aparências, do caos, dos atos religiosos que aglomeram multidões de romeiros, de fanáticos atos de não sei o quê; fiéis infiéis em suas retóricas de pensamento exegeta, unilateral, caótico, estúpido que em nome de uma ideia formulam pré-conceito e preconceito que veiculam as diásporas, os cismas, as cisões sociais.

Diana adiante, eufórica, parte em busca de si e por si corre em círculos, e a escuridão, a falta da claridade, da luz, a chegada da noite, o já então sol sumido, as buzinas dos carros no final do expediente, e Diana corre, corre, corre e sua carreira é interrompida quando todos assistem aquele pulo quase olímpico, era seis horas da noite, os sinos da catedral tocando fortemente tal trombetas de anjos no céu, a lua nova fortemente visível, o sol escondido completamente, uma estrela que cai do alto no momento em que Diana cai na água, pula da ponte, no mesmo rio, na mesma água que outrora a tornara livre, leve e solta, essa água que agora possui seu corpo fraco e a soco, leva-a de volta a terra natal, terra essa que em vida jamais voltaria.

Era seis horas da manhã, o sol nascendo no horizonte meio nublado. O sangue espalhado corria pela água do rio conduzindo o corpo emergido daquela que em vida nunca mais voltaria. O corpo nu ornado de uma luz diferente e os olhos abertos a luz, a boca em sorriso e chegando a Passagem de Pedra, ali fica presa às pedras, às margens, e todos agora choram a coragem daquela que saíra em sangue e em sangue voltara para a todos dizer: "Eu penei eu penei, mas aqui cheguei...”.