O velho da estrada.

Certa vez, eu, serrava madeira a frete numa serraria em vila Rondon no estado do Pará, e tive que ir até o lugarejo chamado zero tirar uma nota fiscal, para uma carreta que estava sendo carregada. E esse lugarejo fica há uma distância de uns cem quilômetros de estrada de terra batida e poeirenta. Sai bem cedinho por volta das cinco horas da manhã, para evitar o transito intenso, caso saísse mais tarde, enfrentaria muita poeira com a ultrapassagem dos outros veículos. Já tinha rodado uns quinze quilômetros e estava terminando de passar uma ponte de madeira, quando vi um velhinho, que acenava com a mão, parecia aflito, talvez queira uma carona. Pensei. Um senhor: É vamos ver o que está acontecendo, não custa nada ajudar uma pessoa de idade... Além do mais estou só, um companheiro é até bom, para conversarmos e a pessoa mais velha sempre tem algo a nos ensinar...

Parei a caminhonete. Abri a janela do lado do passageiro, e saldei:

Bom dia?

-Bom dia! Moço. O velhinho falou.

- Por gentileza, pode me dar uma carona até o zero? Disse ele.

-Posso. -Vou para lá. Falei.

Destravei a porta, e abri. E ele logo entrou. O velho tirou o chapéu. E falou: Eu me chamo. João, e o teu? Patrick. Respondi. E ele prosseguiu:

- Já estava aqui na beira da estrada, há um bom tempo, e ninguém quis me dar uma carona, mas apareceu o Senhor e foi complacente... Agora tá tudo bem.

Olhei para ele e disse:

-Eu volto no final da tarde. Vou só tirar uma nota fiscal, e comprar algumas peças para a serraria do Senhor Diógenes.

Ele pensou, e disse: Há! O senhor Diógenes, conheço muito..., - comprei as madeiras que construi minha casa na indústria dele. E tem mais, ele me fez um precinho especial. Depois disso: indiquei vários clientes para ele. E continuou falando...

-Estou indo lá no zero. Comprar um caixão para o meu amigo que morreu!

-Morreu! Falei com muita surpresa.

-Sim. Redargüiu o velho com ar lúgubre. - Meu amigo, mora contiguo a minha casa há um bom tempo, e trabalhava de empreiteiro nas fazendas construindo currais, e nas horas de folga pregava o evangelho, e tocava violão para o pessoal La da comunidade. E essa noite antes de dormir: Falou que lhe acordasse bem cedinho, que tinha que começar uma jornada. E foi dormir..., Mas quando fui acordar-lo. Percebi que não respondia ai resolvi balançar-lhe, mas não obtive resposta... Chacoalhei para cá e prá lá, mas nada..., ele estava arrefecido e então: Ouvi o coração e conferi a pulsação, e percebi que ele estava morto. Enfiei a mão em seus bolsos, e encontrei alguma quantia em dinheiro, e resolvi dar a ele uma morte digna. Comprando um caixão... Comuniquei o fato aos meus vizinhos, pedi que ficassem com ele, enquanto eu ia até o zero tomar algumas providências para o enterro.

Alguém me sugeriu levar-lo para a vila. Lá onde seu Diógenes tem a indústria, então expliquei lhe: certa vez fui lá fazer algumas compras, e passei perto do local onde as pessoas enterram seus mortos, mas não gostei daquele local: um ambiente sem formalidade; é uma área onde não é plano, e sem demarcação, e a enxurrada provocou algumas erosões, e vi fêmur, e alguns outros ossos humanos exposto ao relento. Também o mato cresce e ninguém cuida, depois seca, e a meninada ateam fogo... Então resolvemos tomar essa atitude: Ir mesmo ao zero e comprar o...

Olhei-o, com espanto e falei: - Que isso! É bem provável que tenha sido morte súbita. Por acaso ele tem uma rede? Ele respondeu: - Sim, tem. Inclusive ele está nela.

-Então. Enrola-o e enterra embaixo de uma árvore frutífera. Que pelo menos serve de energia... O corpo sem o espírito não vale nada mesmo. Assim sendo o corpo poderá até ser útil... Sugeri ao velho.

Ele pensou um pouco e obtemperou:

-Até pensei nisso. Mas quando vi aquele dinheiro, nos seus bolsos... Porque por aqui não tem nem uma delegacia para eu fazer um boletim de ocorrências. Nem cemitério para enterrá-lo ou mesmo um crematório para cremá-lo. Então vou até o zero e ver se compro, mas se não encontrar o ataúde, volto e faço o que você falou...

Tudo bem. E completei: - Se sobrar algum dinheiro, o senhor da ao primeiro pobre que encontrar. Faça isso em memória do seu amigo, ele vai ficar-lhe muito grato. Mas posso lhe dizer outra coisa:

- Quando eu morrer gostaria de ser cremado, e as minhas cinzas fossem enterradas na base de uma árvore, que produz muitas flores na época da primavera. -Daquelas que ficam num jardim de uma praça pública, ou mesmo as margens de uma rodovia asfaltada; que ai o governo tomaria conta daquela árvore e nuca seria cortada. E no dia de finados o valor que fosse pagar com coroa de flores ou buquê, ou ainda com manutenção da sepultura, desse a um catador de recicláveis ou mesmo ao primeiro pobre que aparecesse... -Se todas as pessoas se comportassem dessa maneira o dia de finados seria uma grande festa, e a maioria dos pobres ficariam mais felizes. E os mortos agradeceriam.

Já era dia, e estávamos num declive, daqueles que parece que estamos indo em direção ao magma, e La embaixo, uma ponte de madeira sobre um igarapé de águas transparentes, que ia serpeando e deslizando sobre o granito e o áspero, e logo em seguida perdendo-se na distância ao verdecer... , e depois de passar a ponte, deparamos com um aclive daqueles que parece que estamos indo em direção ao espaço sideral, e que, o declive com o aclive forma-se um grande Vê. Tão abrupto era o local que o sol ainda não atingira a estrada. Fazia um pouco de frio, e estava úmido. Lá no alto por cima de nossas cabeças, brilhava uma bela manhã de novembro, e uma manada ressoava berros pelo espaço.

E o velhinho começou a falar:

- Moço:- Olha quanta queimada. O pessoal não tem respeito nenhum para com a natureza, Jogam as matas no chão, e tocam fogo indiscriminadamente, e jogam semente de capim. Trocam as arvores de dezenas de metros de altura e décadas de vida por capim que talvez não chegue a pouco mais de setenta centímetros, isso tudo, sem cautela ou técnica nenhuma. Veja La às castanheiras, com seu tamanho descomunal seca pelo fogo; Até parecem, que suplicam para com Deus, com os galhos secos voltados para cima. E os coitados dos animais... -, precisamos de um governo mais enérgico nesse sentido. – Quando os políticos vêem por aqui fazerem propaganda eleitoral. Interdita mais ou menos dez quilômetros da rodovia Belém – Brasília, e Pousam o avião, dessem, e falam uma porção de mentiras, e vão embora para preparar suas falácias. O ministro e senador Jarbas passarinho fez muito isso, com a ditadura, e no governo José Sarney, eles são amigos... -, por falar em José Sarney: - O velho maranhense pegou o bonde andando com morte do grande Tancredo neves. Assumiu a presidência do Brasil, porque era vice do velho mineiro. –Fez um monte de bobagens..., teve até inflação de cem por cento ao mês. – Coitados dos pobres ficaram miseráveis. – Mas os guerrilheiros estão de olho nesse povo e vão mudar o Brasil. Será que vai ser bom esse pessoal entrar?... -, já ouvi falar que os sindicalistas junto com o pessoal do PT são sem recursos, sem cultura e quando pegar a presidência vai meter a mão, para se fazerem. Acredito que seja intriga da oposição; Mas não custa nada tentar. Vamos colocar esse pessoal na presidência, e vamos ver...

- É talvez seja bom. Acredito que pior que a ditadura não vai ter jeito de ser, vamos ver para crer. Repliquei pressuroso. E completei...

-Estamos chegando ao quilômetro cinqüenta, e lá tem uma birosca. Que podemos fazer um lanche. Lá Tem uma mineira que faz uns pães de queijo deliciosos, manjar, pudim e sucos de frutas fresquinhas. O bom, que são frutas da região é maná e mesmo ambrosiaco. Na minha alimentação gosto de ser frugal.

Chegamos à birosca, descemos da caminhonete, bem do lado parou um ônibus todo empoeirado, o para lama tinha uns quarenta centímetros acima dos pneus; veiculo adaptado a terreno rigoroso. Entramos... O ambiente espaçoso e confortável para a região. Os homens, as mulheres, e as crianças daquela numerosa família estavam todos a trabalhar. Apenas ficava empoleirada num banco desses de beira de balcão, com altura duas vezes mais que uma cadeira, a garotinha de seis anos, a neta da mineira, a Jéssica, a quem o velho conquistara, quando tomava suco, e comia pão de queijo, oferecendo-lhe um pedaço. Jéssica, tímida e risonha, ia olhando do alto do seu observatório aquelas figuras, aquelas roupas, aquelas crianças, com o cabelo todo empoeirado, que entravam uns atrás dos outros, e se instalavam nos altos bancos em frente ao balcão. O “avô”, como Jessica, mentalmente, chamava carinhosamente de vovoreco, estava sentado sozinho no recanto escuro do lado do balcão, no seu banco portátil, não fazia senão gemer e pigarrear, passando a mão pela gola da camisa, a qual embora desabotoada parecesse afogar-lhe o pescoço, as pessoas que iam entrando aproximavam do balcão, um de cada vez; a uns, os mais chegados, como motoristas e cobradores dos ônibus, o vovoreco levantava de seu banquinho e apertavam-lhes a mão, afinal eles é que traziam a freguesia, a outros se limitava a fazer-lhes um aceno de cabeça.

– Vai um pão de queijo com suco Senhor? Perguntou à mineira.

-Sim. Disse o velho.

Bebeu de novo e encheu de novo o copo. Comeu pão de queijo e bebeu suco. José, o garçom, fez menção de afastar a cortina da janelinha da divisória que separava a cozinha do salão, mas a mineira fez um gesto de impaciência e, ele compreendeu que a mineira não queria que vissem como eram feitas suas iguarias. Em frente ao balcão de mogno, cujo tampo está coberto de fagulhas de alimento, xícaras, pires e até moscas, tanta gente se juntou, daí a pouco, a mineira se viu obrigada a mandar trazer mais bancos, para sentarem-se os recém chegados, porque outro ônibus tinha chegado ao estacionamento. Precisamente em frente à vitrine de salgados, no lugar estratégico, ficou o senhor Adão com um cordão grosso de ouro ao peito, o rosto pálido e doentio e a grande testa que lhe prolongava a cabeça calva. Estava com malária há dois dias e naquele momento, precisamente, arrepios o fazia estremecer, sentindo prostrado, ao seu lado, Antonio seu filho, com gestos bruscos, contava-lhe alguma coisa em voz baixa. Todos, alias, falavam da mesma maneira, o vovoreco baixinho e rechonchudo de sobrancelhas franzidas e as mãos cruzadas sobre o ventre ouvia-os com toda atenção. Do outro lado um homem aparentando uns quarenta anos, apertando entre as duas mãos a sua grande cabeça de ousada expressão e de olhos brilhantes, parecia mergulhados em seus pensamentos... Eu naquela época, impaciente, alisando meu bigode com gesto habitual, ora olhava para o velho, ora para a porta dos fundos. O belo rosto firme e bondoso do velho abria-se um sorriso terno e malicioso. Os seus olhos e os de Jéssica tinham se encontrado, e fazia-a rir com trejeitos. Uma senhora que estava com uma criançinha de colo, perguntou se tinha uma retrete, para a criancinha e ela fazerem suas necessidades, porque havia dois dias que não tomava banho, devido uma ponte que tinha caído e esperaram consertar, só assim puderam passar. A mineira falou para o garçom entregar a chave da retrete para a senhora, E ele prontamente atendeu-a. Jéssica, que não havia maneira para lanchar naquele local, deixou-se deslizar do banco cautelosamente de costas, fixando os seus pesinhos descalços na travessa dos pés do assento, e desapareceu pela porta, esgueirando-se por entre as pernas das pessoas... Fui pagar a conta, mas a mineira falou que o senhor João já havia liquidado-a total. Procurei o velho e vi sentado por algum tempo, com os cotovelos apoiados no balcão, pensando, talvez na mesma pergunta: “Quando é que decidiu então que o amigo seria enterrado? Quando ficaria isso resolvido? E eu sou o responsável? Cadê o líder comunitário?” Que só aparece, quando precisa angariar votos para os políticos.

Saímos... Bem perto da porta de saída, amarrados em uma árvore, alguns cavalos pateando, e balançando a cauda de um lado para o outro, para cima e para baixo e relinchando. Por causa de uma égua que estava do outro lado no cio... Eu agradeci ao velho o pagamento e fiz lhe uma pergunta: O senhor não pagou a conta com o dinheiro do finado? Ele respondeu com firmeza: “É preciso ser-se honesto”.

Naquele Oasis a beira da estrada sob uma selva virgem. Olhei para o céu e vi, ante o infinito azul, nuvens conspurcadas pelo vento formando figuras efêmeras... Entramos no carro... E o velho começou a conversar. E com franqueza ingênua dos velhos, pôs-se a contar a história dos seus antepassados, da sua infância, da sua adolescência e da sua juventude, pondo-o ao corrente de tudo quando dizia respeito à família e aos bens. “Minha pobre mãe: Fé com humildade radiante...”, claro está não faltava na historia.

- Mas tudo isso não passa de cenário da vida. O fundo é o amor. O amor. Não é verdade, Sr. Patrick? - Continuou ele cada vez mais animado. – É agora depois de alimentado tenho até mais energia para contar-lhe minhas aventuras com as mulheres...

- Oh! As mulheres, as mulheres! E o velho, cujo olhar se fizera pueril, pôs-se a falar do seu pretérito, do amor e das suas aventuras galantes.

Tinham sido muitas, e não era difícil de acreditar que assim fosse, quando se observava o seu olhar conquistador, a sua bela figura e a sua vivacidade que punha no relato dos seus êxitos. Ainda que todas essas histórias que fossem repassadas desse caráter, encanto e poesias do amor para os velhos, o certo que o velho falava com tanta sinceridade e convicção que se diria só ele saber o que era o amor, e tal era a sedução que emprestava a suas heroínas, que eu não podia deixar de segui-lo interessadíssimo...

Assim, contou uma historia emocionante, da dupla paixão que tivera por uma encantadora mulher de trinta e cinco anos e por uma filha desta. Deliciosa e inocente criatura de dezesseis primaveras. A mãe tinha um atelier de costura em frente da sua residência, e quando a mãe ia atender alguém. A menina vinha sorrateira, como uma leoazinha faminta aprendendo como abater uma caça. Com um vestidinho folgadinho, sem nada para segurar aqueles peitinhos durinhos como duas peras, nem maduras nem verdes...; e ficava ali por perto com quem não quer nada, e com modos sensuais, vinha encostando de mansinho, e até esfregando em meu braço e eu fogoso com o era, punha meus dedos a vibrar, a dedilhar como num violão, uma obra prima de Badem pawel na época da bossa nova. Acariciava suas pernas ia subido, e quanto mais subia mais ela ia se arreganhando até chegar a sua calcinha frouxa, que até parece que era da mãe para facilitar a ação, puxava-a de lado, e sua fístula ficava a mostra, aquela boquinha na vertical e sua protuberância, aqueles altos e baixos, às vezes cabeludinhos, às vezes molhadinhos, às vezes lisinhos; ia alisando tudo aquilo até que ela entrava num transe: se tremia todinha e dizendo palavras desconexas e seu corpinho durinho ficava todo arrepiadinho e tremendo trem... E tenso suando frio entrando num deleite total... Depois como fosse o sol penetrando na madrugada, ia se esquentado e aos poucos voltando ao normal; e levantava sorrateira, e de mansinho como chegou, dava uma olhadinha de soslaio, uma piscadinha e um ah! Como se estivesse saciada, saia pisando nas pontinhas dos pés em direção aos seus aposentos. Era tudo muito gostoso e efêmero. Como era maravilhoso tudo aquilo... Quando a mãe chegava estava eu: Quente como um vulcão prestes a expelir larvas por todos os lados...

O generoso debate entre mãe e filha e por fim o sacrifício daquela, que ofereceu ao amante a mão da filha, todos esses acontecimentos, embora remotos, ainda faziam estremecer o velho. E contou depois o curioso episodio em que o marido tomara o lugar do amante e ele o próprio, o amante, o lugar do marido...

É meu amigo, por causa desses comportamentos obcecados por sexo, contrai vários micróbios que ficaram em estado latente de inércia, como numa crisálida, vindos a manifestar na velhice, e tive um câncer de próstata e, com isso, o médico retirou-a e junto perdi a ereção e a ejaculação, coisa típica de pessoas com esse comportamento. E hoje nada funciona mais... É a lei da ação e reação atuando no mau comportamento.

É Sr. João, a maioria das doenças acontece como procedemos amiúde com o nosso próximo, e de acordo com o nosso pensamento. Somos o culpado a tudo que venha acontecer conosco, tanto de bom como de ruim. Então temos que estarmos alertas. Lembra de que Jesus nos ensinou que orai e vigiai...

É isso mesmo, filho. Confirmou o velho.

Falou também do seu amigo, aquele o finado:

Meu Deus! Que excêntrico ridículo e estranho era aquele homem! Que no caráter mais doce e esperto do que o de meu amigo Antonio... Não tinha, verdadeiramente, medo dos desordeiros da comunidade onde residíamos, e até ajudava-os com freqüência; não gostava que ninguém metesse nas suas coisas, em suma: suas zangas duravam pouco e, pelo menos na aparência, todos gostavam dele. Quando entrava, na comunidade todos o acolhiam com benevolência até na vila o conheciam como o homem mais divertido do mundo e que nunca perdia a boa disposição. Era um homenzarrão de uns quarenta e cinco anos, de rosto ameninado e brincalhão com as crianças, bastante engraçado e com um sinal sabia fazer caretas tão cômicas imitando os bichos, que os meninos, que rodeavam, não podiam conter o riso. Transbordava de energia, mas não se cuidava com a saúde..., estabeleceu amizade comigo desde o dia que chegou à comunidade, confessou-me que era filho de um pequeno lavrador lá pelos lados da Bahia e seu pai havia altas personalidades que distinguia e estimavam, e se sentia muito ufano, por isso quando o recordava. Pôs-se logo a fazer-me perguntas acerca de Minas Gerais. Também lia livrinhos daqueles de orações. E tocava muito bem violão, tinha o seu pendurado na parede. Nos sábados à tardinha vinham às pessoas das fazendas vizinha da comunidade para verem o Antonio tocar. E também pregava o evangelho e era presunçoso e vaidoso, a tal ponto, que essa curiosidade geralmente lhe dava grande satisfação... Aos domingos a tarde arrumava sua mesinha insignificante, com pedantia e com uma grande postiça. Abria a bíblia sagrada e murmurando não sei o que misteriosas palavras... Depois disso começava a oração. Punha-se a ler muito depressa, a gritar, a cuspir, a dar voltas sobre si mesmo e a fazer uma quantidade de gestos violentos e extremamente cômicos, o ridículo estava em ele se pavonear-se na nossa frente e em tomar uns ares importantes ao fazer gestos. De súbito, eis que ele põe a mão na cabeça e pressiona-a com as duas mãos e começa a ler com a voz entrecortada pelos soluços. Estes vão aumentando de intensidade, até que, com num arrebatamento e fora de si, deixa cair sobre o livro, vivando, mas de súbito, no meio daqueles soluços, desata a rir e continua a ler e muito depressa, com a voz solene e como que alterada pelo excesso de felicidade “é capaz de se desmanchar”, dizia o pessoal que ali encontrava.

Eu perguntei ao mau amigo o porquê daquilo o que significava aqueles soluços e, depois, aqueles risos repetitivos e triunfantes de felicidade e de glória, o meu amigo gostava imensamente dessas minhas perguntas. Explicava-me imediatamente que os prantos e as vivas simbolizavam a idéia da perda de Jerusalém, e que a lei mandava que, perante esse pensamento. Se irrompesse no maior alarido e as pessoas se sentiam compurgidas. Mas que, no meio de tal alarido etc. Meu amigo tinha que lembrar-se de repente de um momento para outro (Essa repente também era também prescrito pela lei), de que há uma profecia acerca do regresso dos hebreus a Jerusalém.

Certa vez, o líder comunitário com seu séquito chegou à varanda no ponto culminante da oração. A maioria das pessoas da vila estava presente e ele ficou e continuou gritando e gesticulando como um possesso. Sabia que aquelas orações para tirar o diabo, que não era possível de interrompê-las e que não corria risco de gritar em frente ao líder comunitário, e agradava-lhe muito bambolear-se perante o líder comunitário e tornar-se importante a vossos olhos. O líder comunitário avançou e ficou apenas a um passo dele. Meu amigo recuou para junto da sua mesinha e pôs-se a ler rapidamente triunfante profecia, mesmo na cara do líder comunitário meu amigo ficava agitando os braços. Era isso que lhe era ordenado e, nesse momento, o seu rosto exprimia uma felicidade e um orgulho extraordinários e cumpria escrupulosamente o mandamento, piscando os olhos de maneira especial, rindo e olhando para o líder comunitário com desdém. O líder comunitário estava atônito, mas por fim, desatou a rir. Fez também uma expressão desdenhosa e afastou-se, juntamente com seu séquito, redobrando então, meu amigo sua gritaria...

O meu amigo pôs-se afirmar-me com toda serenidade, que não tinha visto nem a sombra do líder comunitário, e que, nas ocasiões em que recitava aquelas preces, continuava mergulhado numa espécie de êxtase, de tal maneira que nada via nem ouvia de tudo o que a sua volta o passasse... Disse também que já tinha tido o aval do líder para construção de um templo. Que, a qualquer dia desses, não ia exercer mais profissão de carpinteiro e ia dedicar só ao evangelho. E já tinha até conseguido uma doação de toda a madeira para construção da igreja, com um fazendeiro da região, que é evangélico, e além do mais, o meu amigo tinha até o nome da seita... O homem se acha submetido, em absoluto, á inexorável lei da fatalidade, por isso não pode escapar a sentença que lhe marca o tempo da existência, nem no gênero de morte que haja de cortar a esta o fio...

Ele tinha esse jeito jocoso, mas no fundo era muito bom. Eu o admirava a sua eloqüência e, às vezes ficávamos conversando sobre uma infinidade de assuntos sentados na varanda ao anoitecer... Redargüiu o velho.

É bom Sr João, cultivar as amizades fora da família, quem cultiva amizade somente na família consangüínea, dificilmente encontra meios para desempenhar certas missões fora dela. Quanto mais extenso o nosso raio de trabalho e de amor, mais ampla se faz a colaboração alheia em nosso beneficio... Falei com o Sr. João com júbilo.

Seguimos na estrada..., a visão mistura com o som que tocava no rádio, enche o ambiente com uma trilha sonora de musicas dos anos 60/70. Aquilo me transporta para outro mundo, que jamais vou me esquecer..., e que muito já havia escutado. Senti alguma nostalgia de uma coisa que sempre conheci a fundo, e uma felicidade porque vivi o grande sonho dos jovens. Que percorreram o mundo naquela época..., contando uma historia que aconteceu há muito tempo, mas que eu parecia gostar de escutar outra vez. A paisagem colorida cheia de vida, de energia..., ao lado as dezenas de sons de pássaros, o barulho do motor, a poeira suspendida pelas rodas do carro um rastro atrás daquela fumaça vermelha, o sol bate em meu rosto, e uma curva vira para a direita, o sol desaparece de repente, permaneço virando uns dois segundos seguidos e volto o volante, o sol reaparece. Terei mais seis segundos até ao fim de outra curva..., e damos de cara com uma reta... Que descortina uma paisagem maravilhosa!...

Olha! Que linda fonte, parece pura. Huuuuuuuum! Deu-me até vontade de beber água.

-Eu gostaria de beber dessa água... Posso? Perguntou o velho.

Perfeitamente. - concordei com o velho. E imediatamente. Parei a camionete...

É uma ravina que salta do barranco!...Gritou o velho. E com a porta da camionete aberta, e já com os pés no chão, ele foi em direção a fonte...

Formando uma concha com ambas as mãos, recolheu certa quantidade de água e levou-o aos lábios sedentos. -Insosso, inodoro, incolor, feérico! Falou o velho jogando água para todos os lados... Não há termo de comparação. Como transmitir aos nossos amigos encantamentos essa sensação?...

Só quando vierem por aqui para saber por si mesmo! – e tomou de novo...

-Por enquanto basta, basta-lhes saber o que por aqui ainda tem essa maravilhosa água potável...

A água potável esta se escasseando na terra...

-É fruto dessas agressões que nos vêem cometendo contra a natureza, dentro em breve, nos teremos que obter água em laboratório.

-Para não morrer de sede! E para tomar banho?...

-Adquirirão soluções anti-sépticas nas farmácias e super mercados.

-E a água dos mares?...

-Igualmente está sendo poluídos aos poucos, sucessivos desastres ecológicos a vem comprometendo, sem nos referirmos ao fenômeno de evaporação pelo super aquecimento do planeta. Redargüiu o velho.

- E as grandes galerias situadas nos pólos? Perguntei. Ao velho.

- Desaparecerão. Ele respondeu com experiência, isso não lhe faltava.

- Ainda bem que não estarei mais por aqui... Respondi.

-É ai que você se engana meu caro. Respondeu o velho e continuou. Estaremos, sim, e como estaremos, principalmente, todos aqueles que se têm transformado em predadores do meio ambiente.

- A humanidade não terá como reverter o processo destrutivo, na qual, se meteu? Perguntei ao velho.

- ainda hoje poderia fazê-lo, se quisesse...

Como? Insisti com ele.

- Se cada ser humano tomasse a iniciativa de plantar uma árvore e cada cidade se mobilizasse, no sentido de proteger as nascentes...

- Essa floresta que faz parte da Amazônia legal...

- Em breve terá o mesmo destino da mata atlântica!

É Sr. João, comecei a falar- lhe com pressagio. Gostaria muito de dar um fim em tudo isso. Parar com esse comércio de madeiras...

Acredito muito nisso num futuro bem próximo... Acho que isso é um distúrbio querer dar o melhor para os filhos... Quando a gente trabalha compulsivamente e chega a um momento que ta na hora de parar, é porque está preparada para se curar dessa corrida desenfreada e sem fim. Sempre querendo mais e mais... Em mil casos, apenas um se da conta que tem de parar, e contentar com o necessário. Estou precisando parar, tenho dinheiro suficiente, e também, minha mulher vai se aposentar, e ganha bem, e temos o suficiente...

Esses são os sonhos típicos de um trabalhador compulsivo. Confirmou o velho. E eu prossegui... Sim, sei que tenho dinheiro suficiente, como todos eles. Sei quem sou eu: já estive em festas de caridade, em congressos, em formaturas, e em varias audiências privada com famosos empresários da construção civil.

O dinheiro não basta. Só sei se tem vontade suficiente...

Pensei no meu prestígio e no poder naquele momento, e como era difícil abandonar tudo isso. Mas tenho que abandonar algum dia, assim não da para continuar, nessa busca sem fim... Gostaria de ter meu trabalho como fonte de alegria, e não como uma obsessão compulsiva.

Qual o grande motivo para isso? Meus filhos? O futuro deles? Quero que cresçam logo e cada um tenha o seu diploma. E paro com tudo isso...

Qual o seu grande motivo? Perguntou o Sr. João.

O grande motivo Sr. João, é preparar o futuro dos meus filhos, será que minha família não esteja sendo destruída, quando faço essas viagens?

-Se existe alguém em que eu seria capaz, absolutamente de tudo, é minha mulher, ou melhor, minha família.

No fundo não estava destruindo minha família, estava simplesmente querendo deixar um mundo melhor para os meus filhos. Um mundo sem drogas, sem guerras, sem o escândalo mercado do sexo, onde o amor fosse a grande força que unisse todos os casais povos nações e religiões. O casamento estivesse passado por uma crise, como toda certeza enviada pelo espírito maligno.

É muito mais feliz almejar nada além de uma casa com um carrinho simples, mas novo, com o tanque cheio de combustível na garagem, um Jardim, uma piscina para nadar com os netinhos e comida frugal e apetitosa. Só a aposentadoria da minha mulher da para tudo isso, é o necessário para uma vida feliz... Acredito muito nesse paradigma. Sr. João. E vou conseguir...

-É só trabalhar Sr. Patrick. E não se esqueça de ter uma religião. Essa é fundamental na vida de um casal. Principalmente se essa religião visar à caridade e o bem do próximo... Completou o velho.

E tem mais a riqueza...

Essa história é verídica e continua, e tem mais, vai ser transformada em livro.

Dalmo Arraes
Enviado por Dalmo Arraes em 17/10/2010
Reeditado em 24/10/2010
Código do texto: T2562302
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