Mais um Dia de Trabalho

Quando a mala sem alça que trampa aqui nesse pasquim indecente junto comigo abre a boca, saia de perto...

Vou tentar descrever rapidamente essa figurinha indigesta, coisa que não deve ser a mais difícil do mundo: tem aproximadamente um metro e setenta e dois, deve estar na casa dos cinqüenta anos, filhos criados, separada do marido (óbvio...), não é nada atraente e está começando a ficar acima do peso, porém – por incrível que possa parecer – ainda veste-se como uma cocota de vinte anos (com direito a blusas curtas que fazem aparecer todo a sua pança) e tem ares professorais. Sabe como é. Quer dar uma de vivida e experiente. Só que com toda sua “experiência” não deveria estar trabalhando nesse jornalão de quinta categoria que é onde eu também sou empregado. Claro, suas funções são apenas decorativas. É que ela é amiga de tempos de escola da dona dessa espelunca e da chefa de redação que são duas pessoas adoráveis e que querem ajudar todos os viciados, alcoolistas terminais, escritores empacados no segundo romance, aspirantes a poeta, fracassados, perdedores, iludidos, vagabundos e cães sarnentos que vêm pedir uma chance aqui. Todos são admitidos de primeira e então desaparecem dois ou três meses depois de contratados. Isso eu já vi demais nesses treze anos que estou nessa. Entrei com trinta anos. O resto a gente já sabe.

Uma tarde ela veio até a minha mesa e disse que eu tinha que fazer uma matéria importante sobre um assunto importante. Era tão importante que eu recusei. Preferia fazer a página de horóscopo ou o necrológico que eu ganhava mais e acabei lhe informando isso. Essa saiu num vigoroso rodopio de calcanhares resmungando alguma coisa e eu voltei a me concentrar na tela do computador. Finalmente tinha pegado o embalo para escrever e essa babaca queria que fosse resolver assuntos políticos ou o que quer que fosse? Sou macaco velho e não ponho minha mão em lugar nenhum desde que assinei um “texto gonzo” sobre a convenção nacional da OAB (só um editor em puro surto psicótico me escalaria para fazer uma barbaridade dessas). E quando digo “texto gonzo” podem acreditar piamente nisso. Não foi proposital. Isso eu posso garantir. Eu estava numa ressaca poderosa de tequila e o ácido que eu tinha tomado junto na noite anterior ainda estava batendo demais e só tinha dormido uma hora e meia. Tentei contornar o problema com café, conhaque & marihuana. Deu no que deu...

Nem preciso mencionar que o editor ficou uma arara comigo. Mas publicou do mesmo jeito. Choveram mensagens eletrônicas na minha caixa postal dizendo que eu dera senso de humor a uma situação constrangedora e uma pessoa acabou escrevendo que eu “injetara sangue novo naquele jornal tão conservador”. Outra vez o editor ficou enfurecido quando lhe informaram dos e-mails e acabou me “rebaixando” para a coluna de artes. Amei a minha nova colocação. Finalmente eu estava fazendo o que eu gostava. Já diz o ditado que o que é bom dura pouco. Fiquei poucos meses nessa função e logo fui reloucado para voltar a conviver e tentar escrever junto àquela cambada de idiotas que eram os meu colegas. Que dúvida. E aí tive que tramar contato com essa mulherzinha falsa e fútil que vai tratar esse texto.

Bem, ela não tinha função fixa. Ou melhor, ela tinha. Cuidava da agenda das suas amigas (e minhas superiores hierárquicas), colocava vasos de samambaias e trepadeiras por todo o escritório. Remexia nas gavetas da turma em busca de drogas, garrafas enrustidas de bebida, baralhos, piteiras e “maricas”. Sempre tem um mancão que deixa seus apetrechos dando bandeira. Que dúvida, de novo! E o melhor papel que ela desempenhava era o de bajuladora. Nisso ela era perita. Uma verdadeira expert. Com pós-graduação, mestrado e doutoramento na antiga arte de pelar sacos. Esse tipo de projeto de gente é que sobe na vida. Os que têm personalidade própria vão parar na sarjeta, na reabilitação, na cadeia, debaixo da ponte, ou no cemitério mais próximo. Não que eu seja dono da verdade porque não existe nenhuma verdade insofismável. Empirismo puro. Se é que vocês me entendem. E lá estava eu no meio do fervor novamente, tentando outra vez fazer o melhor possível para agradar os mandachuvas & e os leitores. Merda. Pela manhã, logo que eu chegava, ela jogava a pauta na minha mesa sem ao menos um “bom dia” e virara o rosto num gesto que me parecia puro torpor. Todo dia era a mesma coisa e depois de algum tempo já começava a me dar nos nervos. Não sou exatamente um cara matinal. Odeio ter que acordar cedo para ir a algum lugar. Isso não é vida e quem quiser contestar e me chamar de vadio eu espero que vá para a puta que o pariu. Cheguei finalmente àquela idade em que eu não precisava mais provar nada a ninguém e muito menos a mim mesmo. Resolvi ignorar a baiaca e manter a minha serenidade para obter as matérias mais desinteressante que se possa conceber. Nenhum mistério insondável nisso. O ser humano é medíocre por natureza e não se sente confortável saindo desse estado de total alienação. Todos os meses ela vinha arrecadar dinheiro dos funcionários para uma ou outra futilidade: jantares dançantes, porções de esfihas nas sextas feitas, sabonete liquido ou álcool gel para nos prevenirmos da gripe do porco na redação, doações para os flagelados da seca no Nordeste ou para os refugiados do Haiti e essas coisas bestas que não ajudam a ninguém a não ser o ego inflamado de quem pensa essas coisas. Como eu abandonei meu ego tem muito tempo isso para mim era apenas enganação, engodo e protelação perigosa. Nem preciso dizer que eu me esquivava de todo essa empulhação. E também nem preciso dizer que eu sempre fui mal visto no trabalho e na vida pelas minha posições. Nunca dei a mínima para esse fato. Sério. Podem acreditar. Estou sendo verdadeiro e abrindo realmente meu coração com vocês. Nunca dei a mínima para o que os outros diziam ou pensavam de mim. Não que eu seja um cara solitário. Até tenho bastante traquejo social. Só que o entusiasma os outros me faz bocejar de tédio. Futebol. Júris de crimes hediondos. Acidentes aéreos. Livros de auto-ajuda. Filmes de sucesso de público e critica. Caderno G da Gazeta do Povo. Tenho engulhos só em pensar em compartilhar com outro ser humano as minhas emoções. Inclusive acho meio idiota você dar dinheiro para isso. Enfim, escrevo, escrevo, argumento e argumento e não chego a lugar nenhum.

A senhora em questão uma vez resolveu me doutrinar acerca do que ela chamava de “vida”. Ficou debulhando belas frases feitas durante meia hora até que meu saco se rompeu e eu sem nenhum escrúpulo desci as escadas para fumar. Aí a coisa azedou de vez. Caminhei até o bar do Alaor onde a gente descolava um trago por um preço honesto no meio do expediente e pedi uma vodca dupla gelada e uma cerveja preta para rebater. Acendi e fumei mais um cigarro enquanto bebia. Queria demorar o máximo possível para não ver aquela cara parva. Achei que dar uma tragada num baseado às quatro da tarde seria uma excelente idéia e fiquei saboreando a minha genialidade. A bebida descia como água. Paguei e fui colocar em pratica meu plano. Aquela maconha era de qualidade superior. Na terceira pegada eu já estava chapadinho, chapadinho e resolvi voltar ao trabalho. Tinha duas matérias para revisar e então eu poderia pular fora e voltar para meu bairro e para o botequim sórdido de sempre e me embebedar até a barriga roncar e então voltar para casa e preparar algo para colocar no bucho.

Voltei à minha mesa e reparei que a redação inteira estava me olhando com asco e horror. Já estava mais do que acostumado com essas expressões no resto do cidadão médio. Nem dei bola e continuei meu serviço. Minha chefa aproximou de mim com cautela, porém emanava de seu lindo rostinho um ódio quase palpável.

-A chefona que falar com você. Disse-me.

Lá vamos nós de novo, Malta. Foi o que pensei com os cadarços dos meus tênis já que eu trajava uma camiseta preta como sempre. Levantei-me e dirigi ao bebedouro. Achei um copo de água gelada e virei num gole só. Meu hálito deveria estar cheirando a vodca, cerveja preta, manga rosa & cigarros. Foda-se. Encaminhei-me a ampla sala da poderosa dona do jornal. “O DIÁRIO DO SUL”. Grandes merdas. O salário só dava para o essencial e o trabalho era mais ou menos como o de Sísifo. Quando mais você fazia mais tinha para ser feito. Penetrei no ambiente. Eu até que gostava da proprietária, a Alexia. Tinha uma história de vida pelo que se comentava por ali. Ela era bonita e bondosa. Sabia ser enérgica quando necessário e eu já tinha visto ela furiosa uma vez e por minha causa. Parecia o clima de Curitiba, sujeita a chuvas trovoadas. Porém ela se acalmava rápido e seu pedido de “desculpe-me, extrapolei um pouco” era dada com um sorriso e um olhar. Tinha uma pele de pêssego, belos lábios, olhos que mudavam de cor de acordo com a luminosidade e uma boca muito sensual apesar de já ter passado dos cinqüenta. Sempre bem vestida para e pronta para qualquer ocasião. Apenas me olhou e apontou para uma cadeira. Sentei-me.

- Vieram reclamar do seu comportamento, Carlo Malta. Quando a Alexia te chamava pelo nome completo você tinha que ficar atento. Resolvi não responder.

-Não é correto insultar as pessoas no ambiente de trabalho. Ela continuou.

Insultar as pessoas? Essa eu não tinha entendido. Resolvi ficar na minha e ver até onde essa conversa mole levava. Apenas concordei com um leve meneio afirmativo de cabeça. Lembrei dos tempos em que eu trabalhava naquela fábrica de loucos de repartição pública. Os ponteiros do relógio de parede pareciam que não se moviam. Fiquei mais quinze segundos quieto e olhando para os olhos da Alexia. Decidi perguntar:

-Algum daqueles comedores de pastel de feira veio fofocar que eu falei mal um deles? Agora quem queria saber era eu. Não tinha dito uma palavra a tarde toda na redação.

- Ora, Carlo – ela começava a se acalmar, tinha me chamado pelo primeiro nome – você não falou poucas e boas para a Berenice? Berenice é nome da escrota a quem o texto está sendo escrito. Desculpe pelo lapso se esqueci de mencionar, eu sou realmente um pouco disperso.

-Olha, se levantar-se da cadeira e virar as costas e descer até o Alaor tomar um trago para não escutar um monte de asneiras sobre como viver é insulto então acho que vou procurar uma caverna para morar. Alexia, você vai me desculpar, por favor, eu acho que vocês estão dando muito liberdade para essa tipinha, afinal trabalho com você há quase quinze anos e acho que nunca te dei problema...

Ela cortou meu raciocínio e falou por fim:

- Ora essa! Que bandida. Você está falando a verdade, Carlo?

-Quer uma acareação? Propus.

-De jeito nenhum. Depois eu falo com ela. Veja hoje é terça feira. O que acha de tirar o resto da semana de folga e retornar só na próxima quarta? Já estava pensando e fazer algumas reformulações no jornal e acho que tenho o cargo prefeito para você. Que tal ser meu editor de cidades?

-Nunca fiz isso... disse reticente.

- Nunca é tarde para aprender coisas novas. Vá prá casa e descanse. Você não vai ao seu grupo de meditação essa semana? Você sabe que isso lhe faz muito bem. Tire uma semana. Coloco um estagiário para redigir seus textos e amanhã dou uma breve nota dizendo que você retorna em breve. O que acha? Tem uma semana para pensar.

-Vai me deixar longe dessa tal Berenice? Eu queria REALMENTE saber.

- Lógico. Você pode retornar a sua coluna de variedades? Topa? Aceita? Ainda posso lhe pagar um bom abono no seu salário. Está interessado? Escrever sobre artes novamente? Ela me olhava intensamente agora.

-Topo. Respondi-lhe taxativamente.

- Então nos vemos na próxima quarta. Não comece nada antes de falar comigo, OK?

-Ok.

- Então – completou a Alexia – sua folga começa nesse instante. Vá ao seu grupo de meditação. Não esqueça que faz bem para você. Sua saúde é muito importante para sua produção. Você sabe disso. Não negligencie sua meditação e boas férias.

-Obrigado, Alexia, por tudo. Agradeci e me piquei dali. Cai fora do jornal. Legal. Uns dias de liberdade. Vou caminhando um pé na frente do outro até o banco e saquei uma boa grana no caixa automático. Tecnologia é feita para ser usada, certo? Cheguei no bar do Alaor. Ele saudou.

-Já venceu aquele trago que eu lhe vendi agora a pouco?

-Você prepara um bloody mary para mim, Alaor?

-Claro. No capricho para meu amigo repórter. Ironizou.

O drinque veio rápido, virei de um gole e pedi outro que não tardou a chegar.

- Você já trabalhou para alguém Eu lhe perguntei.

- Claro – respondeu – fui lutador de telecatch nos anos 70 e depois segurança de um deputado famoso. Sabia que o Cavera parou de lutar porque tomou uma surra de mim?

Olhei nos olhos sem muita profundidade. Quase bocejei mas, me contive.

-È mesmo? Eu disse.

-Sim. O cara era o bom da boca na época só que eu era mais jovem e preparado.

-Não era marmelada aquele negócio? Meu finado pai me levava assistir aquilo e não me lembro de você.

-Você era muito jovem. Quer mais uma dose?

-Manda. Respondi-lhe mais uma vez. E pedi para ele me conseguir um táxi.

Eu bebia o resto do meu copo quando o carro chegou. Paguei o Alaor. Entrei no banco do carona. Dei-lhe o endereço do boteco sórdido próximo ao meu apartamento de fundos e fiquei bêbado como um gambá naquela noite.

E assim termina o conto de hoje.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 19/10/2010
Código do texto: T2565692
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