Lembranças

Meus pés inertes repousaram sobre o solo talvez úmido e reconheceram o seu espaço na praça. Lembro-me bem quando obstruíram as suas vivências. Estiveram presos sobre as engrenagens por sei lá quantas horas. Por isso, palavras tortuosas fogem do meu controle e renuncio, portanto, fazê-las desistir. Minhas mãos desenham o passado infortuno, como um rabisco curvado a um papel velho.

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- Nome, idade, profissão, religião...

- Religião? Doutor, eu tenho certeza que Deus vai curar meu filho!

- Não, minha senhora. Já disse que não!

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Vez por outra a memória falha ou tenta falhar em busca de um esconderijo venturoso.

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A mãe do menino desesperada subia a serra sete ou oito vezes por semana a procura de folha de pé de pinhão roxo da Dona Amara. Pobre folha que murchava tão facilmente ao encostar no rosto daquele infeliz de olhos inflamados e pernas sem graça.

Frio bom era aquele da serra, que fazia o menino repousar a cabeça na janela do carro junto ao lençol preferido e tolerar as duas horas de viagem ao lado da mãe vez por outra enjoada do toca fita velho.

- Meu filho, você vai ficar bom.

- Mamãe, esqueci o resto do padre nosso...

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As mesmas duas velhas, costumeiramente, apertando um terço entre os dedos, cochichavam no mesmo banco. O menino escondia o rosto atrás das colunas da Igreja desejando rasgar e queimar aquela roupa franciscana. Aquietou-se no instante em que avistou o ônibus dos devotos encostando no gramado da frente.

- Dona Valquiria, o seu filho tem que pagar a promessa!

- Num tenho não!

- Cala boca, Gabriel.

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O médico limpa a roupa branca e o sapato branco para sentar-se atrás do birô e anunciar as mesmas palavras. Oito anos exatos de exercícios, como uma imposição às pernas. Assim, eram espancadas e eletrocutadas e não vingavam.

- Tem que ser feito três sessões por semana, Gabriel. Você sabe disso!

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Lembro-me bem do último noticiário sobre as pesquisas, mas segundo a mamãe não ia ter sucesso.

- Matar bebê? Onde já se viu...

- É fim dos tempos, Val.

- Eu quero morrer, eu quero morrer...

- Val, tu acha que essa história da novela é verdade mesmo?

- Quero morrer, quero morrer...

- Segundo o Pastor, parece que não.

- Morrer, morrer, morrer...

- Absurdo matar bebezinho que nem se fez ainda.

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Odiava esperar o tempo passar. Contava telha por telha da casa e eram exatamente 666.

- Dona Valquiria, venda essa casa!

- Mas meu filho é doente. Ele gosta daqui.

- Mamãe, o menino da Filadélfia voltou a andar. Anda meio torto, mas anda.

- O senhor acha mesmo que devo vender a casa?

- Mãe! Mamãe!

- Se aquieta, Gabriel. Tô conversando com o Padre.

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Mamãe dizia que o Samuel ia viver por que Deus ia salvar ele. Mas nem viveu. Foi tão triste ver a titia descer o caixãozinho branco dele. Ela disse que ele virou anjo, o meu anjo da guarda.

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- Se conforme, Gabriel. Foi Deus que quis assim.

- Minha senhora, podemos fazer alguns testes no seu filho.

- Eu já disse que não.

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O barulho da cadeira é irritante e chama a atenção das freiras da praça. Nesta areia desenhada por pegadas herdadas do passado, tento adentrar, mas os braços exaustos calejam-se desejosos de vencer o tempo.

... O tempo que passou e o tempo que deixou comigo o meu corpo e que levou consigo a minha alma.

David Cid
Enviado por David Cid em 06/11/2010
Código do texto: T2600334