O Grande Irmão lê Monteiro Lobato

Sabe aquele dia em que você está com os ‘tubos cheios’(1) e como tal, resolve esvaziá-los do estresse tomando um ‘chopes gelado’(2), ‘batendo um papo’(3) ameno com um amigo enquanto aprecia a lua nascer majestosa e linda na Praia do Bessa; aprazível praia urbana da bela João Pessoa, capital da Paraíba.

 

Pois é! Assim estavam o Praxedes e o Alprígio. ‘Papo vai-papo-vem’(4), entre um gole de chope e um bocado de casquinha de caranguejo, um deles coloca a mão do ombro do amigo para chamar-lhe a atenção para uma aberração que acaba de ser noticiada pelo Joelmir Beting, comentarista de uma conhecida rede de televisão.

 

“C.N.E (Conselho Nacional de Educação) censura Monteiro Lobato”

 

Os dois amigos fazem uma pausa no ‘papo’, entreolham-se, e estarrecidos, escutam o conteúdo da manchete.

 

Joelmir Beting, com uma expressão de pesar, que os amigos traduzem como “MAIS UMA DESSE GOVERNO ALOPRADO”, noticia: “Conselho Nacional de Educação-CNE, baixa portaria censurando obras de Monteiro Lobato por conteúdo racista e discriminatório”.

 

Os dois amigos, mudos, fazem sinal um para o outro imitando os técnicos dos times de basquete:

 

PAUSA... Exatamente isso: DÁ UM TEMPO... Precisamos pensar, por isso.... PAUSA.

 

a)–Se o autor que escrevinha essa história tivesse pelo menos 10% da genialidade de Monteiro Lobato, talvez, muito talvez, este texto um dia fosse parar nas mãos de um professor em uma sala de aula. Ocorre que ele, obviamente, não é Monteiro Lobato, por isso vale a pena continuar com o devaneio. REPAREM que nas duas palavras com apóstrofo e ladeadas pelo número UM(1), a intenção ali é designar IMPACIÊNCIA EXTREMA usando uma expressão coloquial. E assim acontece com as demais expressões.

 

01 – Tubo cheio – pode ser substituído por: MUITO IMPACIENTE;

 

02 – chope gelado - pode ser substituído por: ÁGUA GELADA;

 

03 – batendo um papo – pode ser substituído por: CONVERSA AMIGÁVEL;

 

04 – papo vai-papo vem – pode ser substituído por: TROCA DE OPINIÕES.

 

b)-Pronto, o cara que está contanto a história acabou de fazer o papel dos censores do CNE. Ele pode dormir tranqüilo. Se um dia... Ele for dar com os costados em uma sala de aula, provavelmente, a chance de não ser censurado aumenta consideravelmente.

 

Os dois amigos olham novamente para a televisão, mas agora a notícia é sobre a acirrada disputa de três times pelo título do brasileirão. Após discutirem um pouco sobre as chances de seus times, continuam com as elucubrações sobre a conduta discricionária do CNE sobre as obras de Monteiro Lobato que beira o ridículo, e, por que não dizer, o insano, ao classificar o autor como racista e preconceituso em razão dele ter contextualizado “Tia Anastácia” como empregada da cozinha do sítio, ops!, empregada não, ASSISTENTE DAS LIDES GASTRONÔMICAS; “Emília” de teimosa e birrenta, de novo, olha o politicamente incorreto aí, VOLUNTARIOSA E FIRME DEFENSORA DE SUAS CONVICÇÕES; “Visconde de Sabugosa” ser descrito como um ser magro, míope e leitor compulsivo (melhor mudar o conteúdo), UM SER DE CONSTITUIÇÃO FÍSICA ESBELTA, PORTADOR DE DEFICIÊNCIA VISUAL E PRÓDIGO CONSULTOR PARA TEMAS DE CULTURA GERAL; “Saci-pererê”, “Dona Cuca” e demais personagens descritos como portadores de caráter duvidoso. (Praxedes e Alprígio riem enquanto pedem mais uma rodada de chope comentando: “o cara agora foi politicamente correto").

 

E continuam o papo enquanto olham para um grupo de gatas que entram no bar rindo e falando alto.

 

-E o que dizer de Jorge Amado em ‘Gabriela, Cravo e Canela’? Graciliano Ramos em ‘Vidas Secas’? José Mauro de Vasconcelos em ‘Barro Branco’? E os contos dos Irmãos Grimm? E a história de Chapeuzinho Vermelho? Será que o CNE ao classificar o conto de ‘Chapeuzinho Vermelho’ vai apontar conotações de desvios sexuais? Afinal, o Lobo Mau “come” uma velhinha (não esqueça, Praxedes, que a Vovozinha não morre - a velhinha é comida e não devorada) e assedia uma criança; E os ‘Cânticos dos Cânticos? Vai ser classificado como um bacanal? E o que dizer de José de Alencar com o seu índio Peri, principal personagem de ‘O Guarani’? Vai ser censurado só porque é um índio inocente, puro e besta além de ser explorado por uma mocinha esnobe, insegura e mimada; e a enigmática e misteriosa Capitu da obra de Machado de Assis, ‘Dom Casmurro’, vai ser classificada como devassa e sexo-maníaca adúltera? De certo a Capitu deve ser uma péssima influência para as adolescentes que passam as noites nas baladas bebendo Red Bull com vodca.

 

-É melhor parar por aí, comenta, de ‘saco cheio’ com tanta hipocrisia, o Praxedes para o amigo Alprígio.

 

-Garçom, faz o favor, traga mais dois chopes e duas casquinhas de caranguejo. Pede um dos amigos.

 

Praxedes bebericando um gole do chope pergunta para o amigo:

 

-O que fazem dois caras num final de tarde, à beira-mar, bebendo chope e vendo a lua nascer?

 

Alprígio que de rabo de olho secava uma das gatas que freqüentava o ‘point’, e que o encarava fixamente, pensava:

 

“O que será que essa paraibana vai pensar quando souber o meu nome”?

 

-E aí cara? Ouviu o que eu disse?

 

-Sim, ouvi! Acho que o CNE vai baixar uma portaria respondendo a tua pergunta.