O círculo

Minha infância foi simples. Uma infância normal de menino do interior. Nadava no ribeirão, caçava de estilingue, jogava bola na rua, soltava pipa depois da escola, jogava biroca, fazia rampas em terrenos baldios para aprender bicicross.

Num belo dia de Janeiro, fui agraciado por uma tia de Goiás com uma espingarda de chumbinho. Sim, era uma linda espingarda de pressão da marca Rossi, cabo de madeira, novinha em folha. O fato é que a família dela havia se mudado para um apartamento e ficava difícil para seu filho treinar a pontaria e, sendo assim, a mesma aproveitou que era meu aniversário e ofereceu-me o belo presente.

Não preciso dizer que fui alvo de muita inveja, pois todos meus amigos andavam com capangas cheias de cascalho e mamona, com seus estilingues de forquilha de goiabeira com borracha morta ou "sorin" de farmácia, e eu, carregava no bolso uma caixa de chumbinhos diabolô e empunhava uma autêntica Rossi 4,5.

Quando não estava treinando a pontaria, ficava lustrando minha espingardinha. Vários pais de garotos mais velhos batiam na porta da minha casa oferecendo dinheiro, querendo comprar minha relíquia por qualquer valor. Meu pai, como bom negociante me chamava e dizia:

_Filho, vende, pois neste valor dá para comprar três desta.

Mas eu não entregava, era minha, não estava à venda. Para mim ela era única.

_Pai, não posso vender um presente dado por minha tia.

Eu respondia e meu velho entendia.

O tempo passou, a espingardinha foi instrumento utilizado no abate de vários pássaros, lagartos, preás, galinhas, sapos, ratos, entre outros alvos móveis que a vida próxima ao campo proporcionava.

Lembro das vezes em que passava o sangue do animalzinho abatido no cano da espingarda, para que sempre houvesse fartura na caçada - simpatia boba de criança daquela época - e também das vezes que eu e meus colegas fazíamos minha mãe fritar rolinhas, pombas e inhambús que íamos juntando para comer acompanhados de uma guaraná Tupi geladinha.

Depois de algum tempo, já com uns 19 anos, fomos todos passar o Natal em Goiânia. A espingardinha já estava aposentada, guardada em cima do guarda roupas, enrolada em um lençol.

Tive uma idéia: levá-la para GYN* e entregar ao herdeiro de seu ex-dono. Sim, meu primo já tinha um filho com 12 anos e eu achei justo e bacana dar a espingardinha para o moleque para que ele tivesse a mesma sensação que eu tive quando a recebi das mãos de minha tia.

Antes de saírmos, pegue a espingardinha, passei um óleo singer, um spray antiferrugem e dei um trato legal; passei lustra móveis na coronha e enrolei no lençol novamente.

Chegando em GYN, encontrei o moleque, um menino muito ativo, conversador, comunicativo. Falei para ele que tinha uma surpresa, contei a história da espingardinha de chumbinho e entreguei para ele. O moleque ficou vidrado, e pude notar que ele adorou o presente.

Pronto, eu havia completado um ciclo. Consegui fazer com que aquele presente voltasse de onde veio, em bom estado ainda.

Uma semana depois, já de volta à minha cidade, resolvi ligar em GYN para minha tia, e só por curiosidade, perguntei da espingardinha. Minha tia então respondeu.

_Ah, Rodrigo, meu neto é marreteiro. Ficou com a espingarda dois dias e trocou por um videogame com um vizinho.

Vou falar a verdade, me deu vontade de ir até lá e dar uns cascudos naquele moleque.

Mas como cada um faz o que quer com o que ganha, e já que ele achou melhor trocar, tomara jogue muito videgame até fazer calos nos dedos. Mas a minha parte eu fiz, minha convicção de fazer aquele presente voltar na esperança de que um dia retornasse ao meu filho, e assim por diante. Não me arrependo, pois aprendi que nem tudo na vida acontece conforme planejamos e que se assim não fosse, nada teria graça.

*GYN é a sigla usada em Goiás para designar Goiânia.

BORGHA
Enviado por BORGHA em 16/12/2010
Reeditado em 16/12/2010
Código do texto: T2674810
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