UM NASCIMENTO E UMA MORTE

As rodinhas da maca hospitalar eram ruidosas quando se encontravam com os espaços entre as lajotas no chão. Os médicos corriam, o pai corria, as enfermeiras corriam e a mãe deitada com um sorriso sincero na face. O hospital tentava ser silêncioso mas um choro de criança ou algumas tosses eram sempre ouvidas, nas penumbras feitas pelos cantos vazios, nos bebedouros de aço inoxidável igual aos usados em colégios, na recepção. As recepcionistas deixavam o telefone tocar algumas vezes para o atender, assim eram as regras que não estavam escritas, assim era o jogo que não tinha regra. Menino ou menina? A mãe não escolhera o nome ainda, esperaria nascer, esperaria crescer, esperaria até que um dia pudesse chamar tal coisinha de filho ou filha

Um cadeado é trancado.

Tinha uma pequena dificuldade para andar. Cachorros latiam. Bebia sempre sua velha bebida comprada com algum dinheiro perdido por ai, tinha sorte e conseguia se aquecer mesmo no frio cruel da cidade grande. Era ignorado como um pedaço de papel com um anúncio estampado, era ignorante pois não sabia ler as leis dos homens, era sujo pois não tinha o asseio necessário para conviver na sociedade, era feio pois sua beleza ainda não se tornara moda. Álcool como seu melhor amigo, assim sua companhia foi feita pelas doses e pelas garrafas viradas. Bancos de praças, calçadas, meios-fios. Moradia nunca teve, a maioria dos moradores de rua nunca nasceram, apenas estão ali para não serem vistos.

- Empurre, empurre, empurre!

- Qual é seu plano de saúde?

Todos esperavam, uma máquina de refrigerante se tornava a grande atração da recepção do hospital, era bonita, vistosa e a lata de Coca-Cola estampada na frente realmente atraia a atenção. Ninguém comprara um refrigerante na máquina pois raramente tinham dinheiro e quando tinham, a dor de garganta era crucial para a não compra. Hora vai hora vem alguém pedia uma informação.

- Próximo, sala dos fundos.

Caminhar até a sala dos fundos, o alivio para a mãe que podera colocar seu santo filho, o pedaço que veio dela nas mãos de um profissional. Há alguns dias o garotinho de 5 anos andara tossindo muito e nesta noite ele teve uma febre alta que assustou a família inteira. Corre pro hospital! O garoto está dormindo nos braços da mãe. A mãe sente a febre do filho na face e se preocupa, sabia que não podia te-lo deixado tomar banho de chuva com os outros meninos. A porta abre e ela se sente mais tranquila, o médico está la.

Ele olhava para a lua, fria cidade esta. Sua bebida acabou e deitado sobre os escombros de uma sociedade que caminha em passos de formiga o fazia sempre pensar. Nunca houve alguem que amasse aquele homem? Uma barba branca e suja nasceu em seu rosto o tranformando em uma especie de eremita do asfalto, seu corpo curvado e seus olhos tristes davam ao velho morador das ruas um ar de sapiente, sábio. Seria um Zaratustra dos tempos modernos. Desviaria dos buracos com passos tortos, o álcool o consumira e ele se tornara fraco… suas mãos. Ninguém nunca o amou!? Qual era o seu problema, o dele nunca ter nascido? Isso não estava certo. O homem sobe na proteção do viaduto e grita a plenos pulmões: “Hoje, nasce um homem!”

- Empurre!

- Empurre!

- Empurre!

Planos, ela queria que fosse menina para que pudesse ser médica, seu sonho era poder um dia por o jaleco da filha doutora na máquina de lavar. Pagaria o colégio, duas vezes se necessário, aconselharia, acompanharia, conheceria seu namoradinho e iria comprar o primeiro sutiã. Tinha que ser menina! Mas e se não fosse? Dizem que o menino é mais carinhoso com a mãe, se fosse menino talvez ela gostaria que ele fosse engenheiro, arquiteto e que fosse namorador! Claro, toda mãe quer um filho namorador e que jogasse futebol bem mas que pelo amor de Deus não seguisse carreira!

- Empurre!

- Empurre!

- Empurrar.

Ele não chorou, os médicos olharam uns aos outros, ele não chorava. O pai com o rosto escondido pela mascara de cirugia não entendia nada, a mãe não entendia nada. Os médicos tentavam reanimar a criança. Não chorava. A mãe começou a chorar, a criança não respirava, não chorava, não mexia, não olhava. Uma pedra inerte, não havia vida ali, a mãe pariu nada, uma casca vazia, não havia espírito, nem alma, nada. O pai chorava contidamente, a mãe chorava, os médicos choravam, as enfermeiras choravam. Era menino.

Hoje, morre um homem.