UM PEQUENO CONTO/VERDADE

UM PEQUENO CONTO/VERDADE

(didático – a quem interessar possa)

Na última batalha que travei, que valeu o armistício da guerra, nos idos de janeiro de 2000, eu estava na pior. Lutava com todas as forças restantes, conquistadas com suor de sangue, contra uma doença incurável – o alcoolismo. Eis que desperta da letargia do sono dos justos um anjo, a quem chamo Pedro – Pedro Poltronieri. Esse anjo/amigo é um quase mendigo da sorte. Corpo idoso, solitário, esperto e falante, sem bens materiais que não os necessários para a sobrevivência. É analfabeto, mas possui uma alma descomunal a lhe dar a ciência do mundo e guarida.

Em tempos de sobriedade não conheci esse homem. Mas o destino proporcionou-nos agradável e mútuo conhecimento, não lembro em que tempo, no espaço de um hospital com uma ala reservada a dependentes químicos do alcoolismo. Dialogávamos à sombra de um frondoso angico vermelho, existente no pátio, quando em curso estava o interminável esvaziar de cuias com roncos gostosos e sonoros.

Como disse, estava triste, abatido, na ânsia da abstenção da droga, quase pirado. Há longos dias eu estava no aguardo de uma vaga naquele nosocômio e a família não entendia que não se pode tirar todo o álcool da boca do viciado (ou doente), abruptamente. Em certos casos leva às raias da loucura ou do delirium tremens... e eu quase cheguei lá!

Não lembro se pedi para chamar ou se esse amigo, por própria iniciativa, resolveu visitar-me. Fato é que ele apareceu lá em casa e me encontrou sentado no sofá da sala, esfregando as mãos nervosamente. Olhou-me nos olhos, após cumprimentos e não foi necessária uma palavra, nenhum pedido de socorro. Rodou nos calcanhares sem nada dizer e alguns (para mim, longos minutos), voltou com dois litros do “líquido”, precioso remédio que o momento exigia. De posse de um copo, encheu-o pela metade, oferecendo para mim com a recomendação.

– Não preciso te dizer, pois tu sabe, mas, beba só o necessário para te acalmar.

... e sentou-se a meu lado e, enquanto eu, aos goles pequenos, bebia o líquido salvador, contei-lhe o que estava acontecendo. Nas horas que se seguiram bebi somente o necessário, a espaços e com a determinação de que me imbuíra, para não mais sentir a ânsia da falta.

No dia seguinte, após um lindo pôr-do-sol, que apreciei deliciado, quando o Senhor do universo já baixava as cortinas do crepúsculo, dei entrada no hospital, sob cuidados médicos do Dr. Paulo Machado (psiquiatra), Dr. Almiro José Braga de Miranda Ramos (gastroenterologista) e expert em doentes do alcoolismo e da dedicada, amiga e competente profissional em psicologia, Rejane.

Para minha surpresa, não me seguraram os quinze dias convencionais. No décimo primeiro dia o Dr. Almiro, meu grande amigo e ex-chefe no extinto INAMPS, quando de sua visita, que fazia duas vezes ao dia, uma pela parte da manhã e outra à noite, chamou-me para sua sala e me disse:

– Seu Martini, confio no teu taco. Junta tuas coisas e, hoje à tarde, tu podes ir para casa.

Providenciou receitas e atestado de liberação do hospital, apertou minha mão com firmeza, desejando-me boa sorte. Só.

Foi a última vez que o alcoolismo levou-me àquela ala de desintoxicação. Foi a última batalha vencida, que valeu a vitória em mais uma guerra, das muitas travadas na minha vida. Quem sabe, graças àquele anjo, a quem chamamos amigo, ao Senhor dos destinos, com toda a certeza e, com a necessária colaboração dos meus esforços inauditos para não mais recair, fazendo uso do meu livre arbítrio.

Afonso Martini

09/01/11

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 09/01/2011
Reeditado em 20/01/2011
Código do texto: T2718759
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