Na ponta da pergunta, ou no meio? Talvez não haja pergunta alguma, talvez seja ela – a menina franzina e cheia de sardas que nunca fui, mas que ali está, na esquina da tarde, pronta a seguir a mão zelosa que a conduzirá pelo reto destino da rua larga – a pergunta.

Ainda assustam os olhos que me olham, prontos a devorar meu único pensamento. Não quero sorrir, mas de dedo na boca ela suplica que eu afrouxe as amarras e lhe dirija um só e instantâneo esboçar de lábios. Mecanicamente, atendo seu pedido na tentativa de desviar o medo de ser descoberta. O que pode desejar uma menina, com seu límpido e inesperado olhar, com essa mulher, desconhecida e trêmula, que nunca atravessou seu caminho, nem lhe postou uma bala, um afago?

Não tem idade para entender as curvas e os desvios do rosto que carrego por longo tempo, nem para reparar na ausência de pintura, nem apontar a roupa barata que esconde minhas metades. Talvez busque outra menina – por desconhecer ainda a selvageria do mundo – que lhe transmita um pouco da alegria que distribui impiedosa, mas graciosamente, em minha direção.

Talvez, não. Quem sabe, procure anjos do outro lado do azul sereno de suas pupilas ou confunda nuvens com meus brancos cabelos, desmanchados pelo vento. Quem sabe compara esse rosto que levo à avó que lhe espera ao cair da noite.

Ela mantém com firmeza seu olhar brinquedo sobre mim. Nem pestaneja. Talvez queira se mostrar no rosa em fitas do vestido novo, em um primeiro e inocente gesto da vaidade, que um dia lhe cairá como uma luva. Quem sabe queira adoçar meu olhar, quebrar a resistência da distância, ouvir um elogio cheio de admiração e encanto. O que pode querer esse olhar límpido e inesperado de menina? Quais graças desviaram sua atenção da rua ensolarada, ruidosa e tão cheia de movimento e cores?

Sinto-me como um viveiro onde milhares de pássaros arquitetam aéreos movimentos, arrulham feitiços e mágicas. Única gravura, único encanto que se soltou de minha solitária memória. Cativa, seus olhos fagulham. Despejam relâmpagos sobre meus ombros cansados e curvos, já transfigurados em montanhas solitárias que poucos descobrem na paisagem fria da vida. Ela não sabe, mas são perdidos os reflexos das alegrias e tão apagados estão, que não ouso tecer forças para o mais simples gesto de possível felicidade.

Ela me pede. Ela suplica, mostrando dentes, ainda brancos de leite, fazendo sangrar minha ternura quase extinta.
Tanto para encher o olhar passeia, cai e se derrama pela rua ensolarada. O que esses olhos de menina, azul translúcido, tanto buscam nessa pele crestada pelo esquecimento, nesse coração calejado de feiura e ruínas?

Seja o que for, abençoado seja esse rasgo de tempo quando a vida encolhe, de repente, misturando o tempo. Abençoado seja esse segundo de festa, esse pipocar de fogos e luzes de que se é capaz quando almas, sem idade, se tocam na imensidão do amor, por onde cegos, coxos e virgens transitam sem mapas e sem identidade.

Ah, menina, na ponta de seu olhar irão meus ais serpenteando e grato, meu coração tocará o seu em uma infinita e indefinida despedida!
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 10/01/2011
Código do texto: T2719879
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