A troca (A vida como ela é!)

A troca havia sido sublime, o astro rei deitou na Praia do Jacaré e a Lua com o seu manto de prata levantou na Praia do Bessa. Ela adorava apreciar aquele espetáculo divino do alto do vigésimo sexto andar do prédio residencial erguido há pouco mais de três anos no Bairro do Bessa da grande João Pessoa.

O apartamento ocupava toda a área da cobertura do luxuoso prédio. A ampla sacada proporcionava o espetáculo diário do nascer do sol de dentro das águas azuis do Oceano Atlântico, bem ali, pertinho, a apenas umas centenas de metros do prédio.

Ela fazia questão de pelo menos uma vez por semana levantar com o céu ainda escuro, ir para a sacada apenas de camisola para sentir a brisa marinha esvoaçar o leve tecido refrescando seu corpo jovem e voluptuoso. Gostava também de ficar, da sacada, admirando o corpo musculoso, atlético do jovem marido. Um leve sorriso se insinuou em seu rosto bonito enquanto admirava o sol nascer com todo o seu esplendor das águas da Praia do Bessa tal qual uma Fênix de fogo dando um tom dourado no azul turquesa do Atlântico.

Quase sem perceber ela comparou a apoteose do fogo da aurora com o início de seu romance com o marido. Foi num fim de tarde, na Praia do Jacaré. Ela estava de férias com umas amigas e tinha ido apreciar o famoso Por do Sol na Praia do Jacaré, em Cabedelo.

Os fatos aconteceram num repente. Ela saía de uma das lojinhas de artesanato apreciando uma das peças recém adquiridas quando trombou com aquele bonito rapaz. No esbarrão a peça caiu e quebrou em vários pedaços. O jovem consternado pediu desculpas pelo pequeno acidente enquanto juntava os cacos da peça de cerâmica, uma imagem de um jacaré com calção de banho deitado numa rede atada entre dois coqueiros.

Ele fez questão que retornassem à lojinha para adquirirem outra peça semelhante. Infelizmente a vendedora informou que aquela era a última peça. Receberia outras dali a uma semana. O jovem, encabulado, desfazia-se em escusas e atenções. Perguntou se ela morava em João Pessoa. Qual o seu endereço, telefone. Que ela não se preocupasse, ele faria questão de monitorar a chegada da nova peça na lojinha para mandá-la no endereço que ela indicasse.

De nada adiantou ela argumentar que ele não se preocupasse e que, não, ela não morava em João Pessoa e nem em Cabedelo. Que estava ali somente de férias. Que sua residência ficava no sertão paraibano e que aquela era a primeira vez que vinha à capital.

Quando ela se deu conta, eles estavam sentados à mesa de um dos bares do famoso ponto turístico ouvindo o “Bolero de Ravel” tocado pelo não menos famoso Jurandy do Sax. E as amigas? Ela não tinha a menor idéia por onde as amigas andavam.

Eles ficaram ali, conversando, embevecidos um com o outro. Nem perceberam as horas passando. Sem nem perceber o tempo passando... Na verdade, para eles, o tempo havia parado. Estavam em mundo único em que tinham bebido várias cervejas e riam às bandeiras. De início sentaram um à frente do outro, ao final estavam sentados praticamente colados, transmutaram-se em siameses. De longe se via apenas um corpo, duas cabeças e lábios colados. Como é que tinham vivido tanto tempo longe um do outro? Em menos de seis meses haviam namorado, noivado e casado. Imposição dos pais dele, conservadores ao extremo. Estavam casados há cinco anos. Há dois moravam naquela cobertura. Presente do pai dele. Rico construtor, para o único e mimado filho.

A despeito do espetáculo do sol nascendo naquela madrugada. Dos raios que incidiam no seu rosto deixando-o com um toque de rosa dourado, uma sombra pairava no seu semblante. Rogério estava mudado desde o passamento do pai. Foi uma tragédia sem tamanho. ‘Seu’ Afrânio estava vistoriando as obras de um dos prédios do portfólio da empresa. Estava no quinto andar quando tropeçou e caiu no poço do elevador. Foi um duro golpe para a família. Há um ano estavam de luto. Rogério teve que assumir às pressas os negócios da família. Nesse pequeno período em ele administrava a empresa descobriu que a situação financeira não era das melhores. Descobriu que os bancos eram donos de quase todo o patrimônio e que vários financiamentos estavam com as parcelas em atraso. Rogério passou a chegar tarde ao apartamento e sempre muito distante, tendo, inclusive, um tanto quanto distante. Às vezes até agressivo.

Ele tinha notado uma coisa estranha nos últimos meses, Rogério chegava, dava boa noite, bebia algumas doses de whisky, entrava no banheiro e depois de um longo tempo ele saía mais relaxado e com o olhar distante. Depois, se encaminhava para o quarto de dormir, ligava o aparelho de ar condicionado e dormia um sono pesado, entrecortado por murmúrios estranhos. Fazia muito tempo que não faziam amor. Ele sempre arranjava uma desculpa. Que estava cansado. Que o dia não tinha sido muito bom. Virava para o outro lado e dormia aquele sono estranho.

Ela resistiu a aquela situação estranha algumas semanas, depois o chamou para uma conversa. A resposta dele foi: “Querida, discutir a relação a esta altura do campeonato? Dá um tempo, vai!”

O bom senso falou mais alto e ela esperou outra oportunidade e tentou retornar ao assunto. Afinal, ele tinha saído do banho e parecia bem relaxado, embora estivesse com aquele olhar estranho. Ele falou que não queria conversar naquele momento. Ela insistiu, ele falou que não. Ela deu tempo, tomaram uns drinques e ela tentou reatar a conversa que nem tinha começado. Nova negativa. Ele não queria discutir relação nenhuma. Ela insistente disse que eles precisavam conversar se não fosse sobre a relação que fosse sobre qualquer coisa, mas que conversassem, há semanas que só trocavam ”bom dia” e “boa noite”, que a situação deles estava ficando insuportável. Ele continuou na negativa.

Ela mudou de tática. Aproximou-se lentamente dele e tentou envolve-lo num terno abraço. Ele se esquivou, ela insistiu, ele se afastou. Ela resolveu dar mais um tempo e foi para a cozinha buscar mais gelo. Serviu um drinque para os dois e foi para a sala de TV, ele não estava. Foi para a sacada, não o encontrou. Procurou-o por todo o apartamento, inútil. Voltou à suíte e ouviu um pequeno ruído no banheiro. A porta estava entreaberta. Ela entrou lentamente, pé ante pé. A porta do closet estava aberta. Ela procurou um anglo melhor e viu. Viu três longas carreiras de um pó branco. Parecia talco. Ele estava encurvado sobre a prateleira de sandálias. Algumas estavam caídas ao chão. Ele estava com um pequeno cilindro de prata encostado no nariz. Já havia aspirado uma carreira. Ela percebia pelos pequenos gestos que ele fazia que de certo, ele se preparava para aspirar a segunda carreira.

Horrorizada voltou para a sacada, sentou-se em uma das cadeiras e desabou em prantos. Nem lembrou quanto tempo ficou chorando.

Daí em diante a vida dos dois virou um inferno.

Quando ele percebeu que ela havia descoberto o seu vício o pudor de aspirar às escondidas evaporou junto com qualquer vestígio de decência da relação.

Tudo virou de cabeça para baixo. Ela tentava entabular qualquer conversação e ele respondia aos gritos. Ele dizia que resolvia mil e um problemas o dia inteiro e que quando retornava ao apartamento o que é que ele encontrava? Encontrava uma mulher que só sabia reclamar.

Ela argumentava que não era bem assim. Que ela queria somente entender a que ponto haviam chegados. O porquê daquela situação absurda. Ele respondia com mais gritos. E o pior, estava ficando a cada dia mais agressivo.

Um dia, depois que ele saiu do closet com o nariz ainda com vestígios de pó e o olhar alucinado, e ela se acercou para mais uma vez tentar uma aproximação, ele a repeliu com um safanão.

Daí em diante seguiu-se um teatro de horror. Os safanões foram seguidos de tapas, chutes e surras insuportáveis.

No outro dia ele chegava cheio de gentilezas, pedia desculpas e trazia flores. No início ela achou que enfim havia encontrado uma brecha para um entendimento. Pura ilusão. Os espancamentos seguiam-se sempre com intervalos de gentilezas.

Um dia, quando ela se deu conta, estava na Delegacia da Mulher. Ele foi intimado. Advogados foram chamados. A mãe dele, segunda mãe para ela, pediu implorou, suplicou, e ela retirou a acusação de maus-tratos, agressão corporal e outros indicativos de transgressão.

Virou rotina, ela comparecia à Delegacia da Mulher, a mãe dele implorava, os advogados argumentavam e ela retirava a queixa-crime.

Recentemente ela havia pedido a separação de corpos. Foi morar num pequeno apartamento a beira-mar, também no Bairro do Bessa.

Nas noites de doideira, talvez depois de aspirar quilos daquele maldito pó ele ia até o apartamento dela e fazia escândalos dantescos. Os vizinhos chamavam a polícia, ela registrava a ocorrência, os advogados eram chamados e em pouco tempo ele era liberado.

Virou uma rotina infernal. Ela se sentia o próprio Sísifo. Pegava o seu fardo, as injúrias sofridas, levava até a delegacia, entregava às autoridades competentes, ele ficava detido por um tempo e os deuses da justiça, advogados e dinheiro o soltavam e recomeçava tudo, de novo.

E agora ela estava ali, sentada na areia úmida da maré que baixava. A Praia do Bessa estava quase deserta àquela hora da madrugada, apenas uns poucos madrugadores caminhavam a beira mar. As fraldas da camisola estavam molhadas pelas espumas que viam desfazer-se aos seus pés. Os primeiros raios do sol despontavam no horizonte das águas longínquas. As lágrimas que desciam sobre o seu rosto mimetizavam-se ao sal da brisa marinha, entravam pelos seus lábios e adquiriam o travo amargo do sofrimento.

Instintivamente passou a mão por sobre o olho esquerdo quase fechado pelo hematoma violáceo. O olho direito fechou logo depois do primeiro safanão recebido quando ainda estava dormindo. O lábio inferior rachado pendia de lado deixando à mostra um dente quebrado.

O seu gesto fora de pura defesa. Lembrava vagamente de ficar caída depois de receber um violento murro. Aliás, ela se lembrava de pouca coisa, quase nada. Ainda estava tentando entender o que tinha acontecido.

De repente, dos recantos mais escondidos de seu consciente, foi surgindo um ponto luminoso num crescendo extraordinário. O ponto surgiu à sua frente numa rubra bola de fogo seguida de um trovão ensurdecedor.

Ela olhou para a camisola e viu que não era a água que havia molhado as fraldas do abrigo de dormir. Na verdade era líquido viscoso, rubro.

Em uma das mãos pendia uma pistola de grosso calibre.

Como aquela arma havia surgido ali, em sua mão?

Então, tudo veio à lembrança. Ela estava tentando se agarrar ao seu agressor, o ex-amado marido para tentar evitar as tapas, os murros, os chutes, quando sua mão resvalou em algo metálico. De súbito, ela estava ao chão, se arrastando. Se perguntando como Rogério tinha conseguido entrar no pequeno apartamento, quando horrorizada o viu, vagamente, avançar para cima dela, para mais uma agressão.

Instintivamente levantou a mão para evitar mais um golpe, para se defender. E neste gesto ela apertou a mão com todas as forças que ainda lhe restavam aquele objeto metálico, frio, que ela segurava.

Ouviu um estampido [..]

Depois do estampido sentiu que Rogério com um grito abafado caía sobre o seu corpo. De seu pescoço um jorro de sangue saía aos borbotões.

(...)

Absorta, perdida nas recentes e tristes lembranças ela olhou novamente para o mar.

Esquisito...!!!

As águas do mar estavam vermelhas?

Ouviu uma sirene...

Ela olhou para trás e viu as luzes estroboscópicas de um carro de polícia.