Delicioso sofrer

Escapo do abraço do sono antes da luz dourada do Sol derramar-se pelo mundo, bocejo silenciosamente, sinto que espreguiçar-me seria deveras prazeroso, mas não o faço. O motivo pelo qual me privo de tal gozo, é para não perturbar a bela dama que ao meu lado repousa pacificamente; me regojizo por ter despertado antes que ela o fizesse, assim posso observá-la adormecida, como se congelada no tempo.

Ainda não há luz invadindo o quarto, meus olhos, parcialmente acostumados com a penumbra, podem, no máximo, delinear um grosseiro contorno dela, são meus outros sentidos que a recriam em minha mente. Meus ouvidos captam sua respiração, serena e ritmada, a cada expiração, me concentro naquele vai e vem de ar. Enquanto minha atenção está voltada naquele som, de ar sendo tragado e expelido, lembro da voz que é produzida, por um processo similar, pela garota. Na primeira vez em que a ouvi, achei-a um pouco aguda demais, entretanto, na medida em que fui conhecendo-a mais e mais, aquele som foi se tornando cada vez mais doce, até atingir o ponto em que me causa arrepios até ao produzir palavras monossilábicas. Os primeiros raios do Sol começam a trespassar as diáfanas cortinas que balançam delicadamente na frente da janela entreaberta, e com o pouco de luz que trazem, começam a traçar um grosseiro esboço prateado das belas sinuosidades de seu corpo, e dos finos e impecáveis traços de seu rosto. O temor de despertá-la permanece comigo, enquanto vou, milímetro a milímetro movendo meu braço, sobre o qual repousa o alvo travesseiro, que acomoda a cabeça dela. Não é a dor de tê-lo mantido imóvel por horas, ou a importuna câimbra que ameaça manifestar-se impiedosa, que me fazem movê-lo; poderia suportar tudo isso e muito mais, para tê-la tão próxima. O que acontece, é que desta posição, não consigo fitar seu rosto, que vem se tornando cada vez mais claro com a alvorada que se aproxima, e o dia toma o lugar da noite e seu breu, que abrigou nossa paixão desenfreada, momentos que apenas nós dois compartilhamos e conhecemos. Quando meu braço está quase liberto, ela se move brevemente, murmura algo, literalmente imobilizo-me, nem verter ar pelos pulmões ouso; fecho os olhos e desejo com todo meu ser, que ela não venha a despertar. A moça mantém-se abrigada na inconsciência, sou inundado por felicidade sem tamanho, enquanto apoio o cotovelo no colchão macio, e a face na palma da mão; agora consigo observar suas feições. Tentar descrever a beleza que vejo, ou a profundidade do que sinto, seria como tentar encher uma peneira com água, transmitir com palavras a sensação de estar frente a mil vulcões em erupção, ou tentar negar, o que por ela sinto; mera pretensão.

Sem saber por quanto tempo exatamente, ele sempre parece distorcer-se quando da presença dela compartilho, fico a olhar, perdido naquele rosto que me sufoca, lembro da cor dos olhos, agora por pálpebras escondidos, que fazem com que me minhas pernas tremam sempre que se viram em minha direção. Sinto uma força praticamente ilimitada tentando fazer com que a beije, resisto, ainda que relutante, a ela. Mas não resisto a colar nossos corpos, que nus, se encaixam, ofego ante o contato, incendeio com o calor que exala dela, me controlo a fim de não aumentar a pressão daquele encontro de carnes fumegante. Com as costas de dois dedos percorro, com um toque que mal o é, aquela pele sedosa, indo do ombro, passando pela curva dos seios macios, até a curvatura da cintura, pouso a mão sobre uma nádega arredondada, aprecio cada instante em puro deleite. Inspiro profundamente, um aroma adocicado, oriundos daqueles cabelos perfeitamente desarrumados, me invade, lembra camomila, ou alecrim; um fio faz cócegas em meu nariz, apavorado, quase espirro. Separo-nos, por medo de que estas chamas que interiores, revoltas em seu cárcere, levem-me a acordá-la. Não é meramente o erotismo da situação que parece capaz de dobrar minha vontade, minar minhas escassas forças, fazendo com que a desperte, a fim de tê-la de imediato, uma vez mais, entregando-me completamente a ela e seus desejos, e ser da mesma maneira tratado. É o calor do que sinto que me preocupa, o sentimento enclausurado, escondido, que deseja imediata libertação, que eu acabe com o sono no qual ela se perde, e que diga, urre a plenos pulmões, o que sinto. Fico aterrorizado em fazê-lo, temo sua reação, é uma incógnita o que ela sente por sua vez, ou deixa de sentir; um momento de plena angustia toma conta de mim.

Com um suspiro, afasto o pensamento que me faz sofrer de forma atroz; sorrindo, caio de costas na cama, as mãos atrás da cabeça, encarando o teto, pensando em como sou incrivelmente afortunado, em poder sentir o que sinto. Pouco depois, ela gira, aninha o rostinho em meu peito, sua mão desliza pelo meu abdômen, suas unhas me arrepiam o corpo por onde passam, até que ela me abraça, entrelaça sua perna esquerda na minha. Tiro uma das mãos da nuca, coloco-a em seu ombro enquanto abraço-a com infinita ternura, ela se espreguiça com a leveza de uma gata, ronrona como tal, e beija meu tórax, estremeço. Ela começa a abrir os olhos, fecho os meus; parece estupidez, ainda mais sentindo o que sinto, mas este é um momento, que não quero dividir com mais ninguém.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 21/02/2011
Código do texto: T2805774
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